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O papel da big tech nas eleições brasileiras de 2022, parte 3

 
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Este é o terceiro episódio de uma trilogia. Ao contrário de algumas das principais trilogias do cinema, é muito provável que você entenda tudo que eu vou descrever aqui, mas, tal qual em House, embora os episódios funcionem de forma independente, eles se complementam quando unidos. Ao contrário de House, aqui não tem o médico manco tendo uma epifania e criando um “deus ex-machina” lá pelo 36º minuto do episódio para que ele termine com a resolução do problema. Nas eleições brasileiras, tudo que poderia ter acontecido, aconteceu. Ou quase tudo — e não graças à big tech, mas a gente já chega lá.

Você vai entender tudo que eu disser aqui, mas eu farei referência a uma série de episódios e análises feitas nos dois episódios anteriores. Se você ainda não ouviu e o tempo, a paciência e/ou o interesse permitirem, pare este episódio e volte para os dois anteriores. No Tecnocracia #74, nós falamos do período anterior à eleição, com o bolsonarismo construindo sob os olhares moucos das plataformas duas teorias delirantes (a da fraude eleitoral e do artigo 142) e o TSE definindo regras e fechando acordos com as plataformas. Já o Tecnocracia #75 vai do primeiro turno até o último dia da presidência de Jair Bolsonaro1, com o bolsonarismo executando a estratégia cultivada nos anos anteriores ao gritar “fraude” e as plataformas agindo com mais afinco que o normal, mas ainda longe do ideal.

Este terceiro episódio pega o período a partir da posse de Luiz Inácio Lula da Silva, em 1º de janeiro de 2023, para seu terceiro mandato como Presidente da República. É uma semana a partir da posse que se desenrola a terceira fase da postura da big tech no Brasil frente ao golpismo explícito do bolsonarismo. Após fingir que tudo estava sob controle nas fases anteriores (com mais afinco na segunda fase, com a base bolsonarista pedindo golpe de estado nas estradas e na frente dos quartéis), a big tech foi obrigada a abandonar qualquer teatro de normalidade quando milhares de criminosos quebraram as sedes dos Três Poderes em Brasília no 8 de janeiro.

Sai a normalidade forçada, entra uma estratégia feroz nos bastidores para evitar ou diminuir a responsabilização pelo papel que todas inegavelmente tiveram — principalmente por omissão — no processo golpista. Essa postura se fortalece quando volta a tramitar com renovado interesse um projeto de lei, o 2630/2020, que busca impor obrigações e prevê punições em caso de descumprimento por parte das plataformas. Tão acostumada a operar quase sem nenhuma regulamentação, a big tech se esforçou em reuniões a portas fechadas para continuar sem amarras legais.

O Tecnocracia é um podcast sem frequência definida em 2023 que aborda todos os impactos — positivos, mas também negativos — que a popularização da tecnologia causa nas nossas vidas. Para pensar algo sobre o assunto e abordar alguns temas espinhosos, eu misturo jornalismo, análise de dados, livros e humor tacanho. Eu sou o Guilherme Felitti e o Tecnocracia está na campanha de financiamento coletivo do Manual do Usuário, a partir do plano que custa R$ 16 por mês. Se você quer ajudar o Tecnocracia, o Manual, os dois ou só dar dinheiro para gente, acesse esta página.

O cenário estava posto: Lula ganhou nas urnas e Bolsonaro fugiu do país dias antes da posse. O TSE teve que agir de forma mais assertiva no primeiro e segundo turnos após as plataformas fazerem corpo mole e o bolsonarismo, inconformado com a derrota e preso numa realidade paralela, já tinha apelado à violência e ao terrorismo quando tentou invadir a sede da Polícia Federal no dia da diplomação de Lula ou explodir um caminhão-tanque perto do Aeroporto de Brasília na véspera de Natal. Para qualquer pessoa mais atenta, já estava claro que ganhar a eleição foi um passo considerável, mas ainda existiam vários problemas a se resolver — a forma como as Forças Armadas mergulharam na política e se entranharam no Executivo era um dos principais. O radicalismo do bolsonarismo também não dava qualquer indício de recuo.

Há um momento óbvio que define esta terceira fase: o 8 de janeiro. Se havia alguma estratégia da big tech para se aproximar do governo Lula, ela implodiu ao fim da primeira semana de governo. O risco de uma tentativa de golpe de estado organizada nas redes e perpetrada na vida real por bolsonaristas já estava no radar de todos. Para o episódio, eu fui atrás de alguma previsão sobre o 8 de janeiro depois que o trumpismo instituiu que autocrata-wannabes saem do poder após tentar dar um golpe de estado organizado digitalmente.

No Tecnocracia, um dos principais problemas da pesquisa é encontrar poucas referências. Para o risco de replicação do 6 de janeiro de 2021 norte-americano no Brasil, a questão é o contrário. A alegação de fraude eleitoral, a articulação online e o golpismo do chefe do movimento eram tão parecidos que quase todo mundo cantou a pedra ainda em 2021. Na Americas Quartely, Brian Winter previu em março de 2021: “Um Bolsonaro inseguro prepara seu próprio 6 de janeiro”. A previsão foi tão popular que você ouviu até no Tecnocracia #432:

Trump foi o primeiro grande case de projeto de tirano que usou tecnologias contemporâneas (smartphones, redes móveis, redes sociais) contra uma democracia estabelecida. Enquanto a big tech não fechar as portas que continuam escancaradas, outros, já cientes do caminho e das razões pelas quais a primeira tentativa não deu certo, tentarão. E, para fechar essas portas, é bom que o controle não esteja totalmente na mão de quem já deu indício atrás de indício de possuir uma régua ética terrível. Porque com certeza nós teremos novas tentativas. A próxima, inclusive, já tem data e local: outubro de 2022, sessão eleitoral perto da sua casa.

Atrasou dois meses e meio, mas veio. Aparentemente, todo mundo sabia. Se eu tivesse que apostar meu dinheiro, diria que, dentro da big tech, a maioria sabia. O problema não é saber, são os incentivos internos e a estratégia da empresa como um todo. Mas saber e não agir — por que não quis ou a sede internacional não deixou — tem o mesmo resultado de não saber.

Como acontece o 8 de janeiro? Após semanas de tensão pela possibilidade de mais um absurdo bolsonarista ocorrer durante a posse, o fato da cerimônia ter transcorrido sem grandes incidentes deu um alívio generalizado. Mas nos dias posteriores à posse, alguns pesquisadores e jornalistas começaram a soar o alarme: existia algo grande sendo organizado.

A senha online era a expressão “Festa da Selma”. Sob a temática de uma festa de aniversário, a convocação para o que parecia uma manifestação detalhava os ingredientes para festa com jogos de palavras: é preciso de “açúcar União” (não pode ser outro, alegavam os posts) e 5 espigas de milho (uma tentativa de camuflar a necessidade de 5 milhões presentes). Há também uma citação a “Ayrton Senna + 4”, mas o Sherlock aqui falhou completamente em entender. Em grupos bolsonaristas, circulavam convites para caravanas gratuitas partindo de diferentes cidades para Brasília. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) publicou milhares de mensagens trocadas pelos golpistas em grupos públicos de Telegram para acesso público. A investigação posterior da Polícia Federal (PF) descobriu alguns dos financiadores não apenas das caravanas, mas também da infra-estrutura dos acampamentos golpistas na porta dos quartéis, com fluxo constante de comida, bebidas, barracas e banheiros.

Milhares de pessoas marcharam das portas de quartéis, inclusive do Quartel-General do Exército, chamado de Forte Caxias, em direção à Praça dos Três Poderes. Ao chegarem lá, romperam barreiras montadas e contaram com a falta de policiamento para invadirem e depredarem os prédios que funcionam como sedes dos três poderes da República. Na sede do Supremo Tribunal Federal (STF) o plenário foi destruído, com janelas quebradas, as cadeiras dos ministros arrastadas para rua, togas vestidas por golpistas e a porta do gabinete do ministro Alexandre de Moraes arrancada. No Palácio do Planalto, além de destruir gabinetes e repartições, o grupo quebrou itens centenários, rasgou as fotos de todos os presidentes expostos e depredou obras de arte. No Congresso, além da depredação de gabinetes, golpistas tomaram os lugares principais das Mesas Diretoras da Câmara e Senado.

João Guilherme Bastos dos Santos

Olá! Meu nome é João Guilherme, sou pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital, diretor de análises e estudos temáticos do Democracia em Xeque e também membro do International Panel for the Information Environment. Eu trabalho no combate a campanhas de desinformação em três principais áreas, que são saúde (principalmente relacionada à pandemia e vacina), ataque a instituições democráticas (pegando tanto eleições quanto outros períodos), e questões relacionadas ao meio ambiente e negacionismo relacionado à emergência climática.

Bom, para falar um pouquinho da eleição de 2022, acho muito importante pensar no modo como o resultado da eleição pode ter mudado a avaliação de muitas pessoas sobre o que aconteceu. Em 2018, a gente teve um candidato de extrema-direita vencedor, isso foi colocado em grande medida na conta das plataformas e aplicativos de redes sociais online, e por isso as pessoas procuraram retrospectivamente quais eram as pistas disso que a gente tinha, quais potenciais problemas poderiam ter se evitados e uma série de outras coisas prevendo o passado, que fizeram com que muitas coisas ficassem muito evidentes.

No momento que o Bolsonaro perde em 2022, a gente tem um cenário muito diferente. Tem pesquisadores que chegam a falar que não houve nenhuma grande informação falsa ou então que esse problema acabou e por aí vai, sendo que o candidato a deputado recordista de votos, o Nikolas Ferreira (PL-MG), faz uma campanha e tem uma carreira inteira em torno de questões como o banheiro unissex. Dificilmente você vai conversar com alguém do eleitorado evangélico mais antenado em redes sociais online que esteja totalmente alheio a essa ideia. Mas, no momento em que o candidato que investe nisso ou se beneficia para o cargo de presidente não sai vencedor das eleições, a gente volta a ignorar, por exemplo, como essas estratégias estão no legislativo, como essas estratégias foram utilizadas pelo candidato derrotado e como essas estratégias continuam sendo um mercado muito grande aqui no Brasil.

E aí, nesse ponto, dei um exemplo de uma informação falsa e de um candidato recordista de votos que parece estar sendo ignorado em várias análises, mas a gente também pode pensar no modo como deixamos de avaliar iniciativas de redes sociais online, na medida em que o candidato de extrema-direita acabou derrotado no pleito. Quando a gente fala disso, parece que é algo que aconteceu naturalmente, que as plataformas tomaram medidas para que as coisas fossem diferentes, mas na verdade a gente tem uma articulação da sociedade civil, pelo menos desde 2020, 2021, juntamente com órgãos como TSE e organizações que prezavam pela lisura do processo, tentando evitar que aqui no Brasil acontecesse uma tentativa de golpe.

Principalmente depois do Capitólio, isso se intensificou e se traduziu em pressão para que algumas regras fossem alteradas, ou, por exemplo, que as novas funcionalidades do WhatsApp viessem só depois da eleição. Quando isso acontece a gente não está só atrapalhando os entusiastas que gostariam de espalhar para muitos grupos: existem mercados que se preparam na expectativa dessas inovações, que tem uma série de estratégias que seriam colocadas em prática assim que essas inovações acontecem, então a gente interfere não só numa indústria, mas numa cadeia produtiva, na produção de conteúdo para entrar nessas redes, as pessoas unindo vários grupos para tentar colocar dentro disso. Interfere no quão caro é para você conseguir viralizar um conteúdo, uma vez que muitas, por mais que seja ilegal fazer campanha desse tipo, muitas das campanhas no WhatsApp são vendidas e as ferramentas cobram por envio.

Para além disso a gente pode olhar, enfim, para o YouTube e para outras plataformas, cada uma delas vai ter esforços e pontos em que não foram também sucedidos, mas eu acho que um ponto que talvez graças à mudança do WhatsApp não tem se concretizado, mas que começou a apontar um pouco a sua relevância é a dobradinha TikTok + WhatsApp e Kwai + WhatsApp.

Tanto Kwai quanto TikTok entregam conteúdo a uma quantidade muito grande de pessoas para além de seu círculo de seguidores inicial, eles entregam conteúdo para muito mais pessoas, por um lado, e por outro, eles facilitam o download para dentro do WhatsApp. No momento que esse vídeo entra no WhatsApp, ele sai de um cenário em que você tem um link para acessar ele, e entra num cenário em que cada pessoa acessando faz um download desse conteúdo para o próprio celular. Quando você manda isso para um grupo e as pessoas do grupo veem, isso multiplica a quantidade de cópias físicas desse conteúdo em celulares diferentes que podem a qualquer momento voltar online.

Se a gente lembrar de conteúdos compartilhados pelo próprio Bolsonaro com o selo do Kwai, por conteúdos posteriormente a 2022, ou conteúdos durante o período eleitoral, durante tentativa de golpe no 8 de janeiro, quantos deles estavam relacionados a Kwai ou TikTok utilizando as ferramentas que favorecem a edição de conteúdo e alcance por um lado e por outro circulando dentro do WhatsApp mesmo quando são excluídos dessas aplicações. O TikTok até agora parece ser mais responsivo e agir mais rapidamente do que o Kwai, mas a gente ainda precisa conferir como isso vai se dar. Essa parece ser uma inovação que a pressão da sociedade civil aliada à tomada de decisão de postergar um pouco as alterações no WhatsApp pode ter evitado.

Quem não estava tentando derrubar a República acompanhava tudo atônito pelas redes sociais por um facilitador: os próprios golpistas transmitiram, registraram e publicaram as depredações e crimes nas mesmas redes sociais usadas para organizar a tentativa de golpe de estado.

Se você acha que a organização do 8 de janeiro não usou de forma fundamental plataformas de redes sociais, eu tenho uma Belina a álcool, ano 93, para vender para você, pouquíssimo uso. Quase um ano depois entendemos que a postura da big tech no 8 de janeiro foi pior do que só permitir: elas lucraram, e não apenas em 8 de janeiro. Elas estavam lucrando com o golpismo desde sempre (como já mostramos nos episódios anteriores), mas especialmente após a proclamação do resultado pelo TSE. Desde a derrota nas urnas o bolsonarismo rodou por meses anúncios no Facebook e Instagram mentindo sobre fraudes nas eleições e convocando manifestações. A Agência Pública achou 65 anúncios irregulares vistos mais de 125 mil vezes em novembro de 2022. Em fevereiro de 2023, já depois da tentativa de golpe, o NetLab da UFRJ atualizou os dados: foram, pelo menos, 185 anúncios de viés inegavelmente golpista veiculados no Facebook e no Instagram.

Quando chegou o 8 de janeiro, o lucro veio de outras formas. No YouTube, golpistas lucraram com Super Chats durante em transmissões ao vivo, segundo a agência de checagem Aos Fatos3. Pior que isso foi o que uma Abin — infestada de bolsonaristas — concluiu: no dia da tentativa de golpe, canais de extrema-direita no YouTube chegaram a lucrar R$ 135 mil com transmissões golpistas. Abre aspas para a reportagem da Folha de S.Paulo:

O vereador de Planaltina de Goiás Genival Fagundes (PL) também transmitiu ao vivo e in loco via YouTube a invasão, de acordo com a agência. O canal foi desativado por ele, mas, segundo estimativas da Abin, faturou no mínimo R$ 135 mil.‘A transmissão rendeu dividendos pagos pela plataforma ao canal de Genival Fagundes, Política sem Curva. Enquanto transmitia, Fagundes narrava atos e exaltava os invasores, defendia a ação e orientava os participantes’, descreve o relatório. Já Elaine Helena Roque retransmitiu e comentou ao vivo em seu canal no YouTube os ataques de 8 de janeiro. O vídeo —já apagado— teve mais de 42 mil visualizações e recebeu dividendos pagos pelo YouTube, segundo a Abin.

Os dados foram repassados pela Abin à CPI do 8 de janeiro. Não está claro como a Abin chegou aos números — a agência não detalhou.

O YouTube não foi a única fonte de renda dos golpistas. O programa Google AdSense foi fundamental para que sites de extrema-direita lucrassem enquanto mentiam sobre fraude eleitoral e incentivavam atos golpistas após a derrota de Bolsonaro nas urnas. Abre aspas de novo para a agência Aos Fatos:

Desde 12 de novembro (de 2022), links que levam aos sites Patriota News e Diário Nordeste foram inseridos em páginas que utilizam o Google AdSense como forma de monetização. Ambos possuem identidade visual parecida, publicam conteúdos idênticos e foram criados em setembro deste ano. Além de serem anunciantes no Google Ads, os sites também utilizam o Google AdSense para ganhar dinheiro, exibindo anúncios em suas páginas, além de pedirem doações via Pix.

Os casos do Patriota News e do Diário Nordeste dizem respeito diretamente ao golpismo pós-eleições, mas são fichinha perto do alcance e da receita que outros sites pioneiros na propagação de ataques baseados em mentiras contra o sistema eleitoral e o Estado Democrático de Direito. Abre aspas para, de novo, o Aos Fatos:

O Jornal da Cidade Online é investigado pelo STF no Inquérito 4.828, que apura os atos antidemocráticos. Em relatório sobre o caso, o ministro Alexandre de Moraes afirmou que indícios e provas apontavam para a existência de “uma verdadeira organização criminosa, de forte atuação digital e com núcleos de produção, publicação, financiamento e político”. Integrante dessa rede, a publicação teve “aumento expressivo” de faturamento com publicidade por meio do Google AdSense logo após as eleições de 2018, segundo a investigação. Segundo relatório final da CPI da Covid-19, realizada no Senado em 2021, o Jornal da Cidade Online integra um “grupo formado por organizações que na aparência funcionam como empresas jornalísticas”, porém sem “o devido compromisso com os princípios éticos da profissão, tais como a divulgação da informação precisa e correta”.

Como bem lembra a fundadora do Aos Fatos, Tai Nalon, assediada judicialmente pelo Jornal da Cidade Online, o inquérito 4.828 considera que o site, junto a outros como o Terça Livre, fazem parte de uma “verdadeira organização criminosa”, cujos donos receberam “aumento significativo de recursos por meio da ferramenta Google AdSense entre 2018 e 2019”. Segundo a Receita Federal, a receita do site pulou de R$ 346 mil em 2018 para mais de R$ 1 milhão em 2019, alimentado tanto pelo AdSense como pela SECOM bolsonarista.

Outro site de extrema-direita que usava seu grande alcance para pôr em xeque e atacar o sistema eleitoral brasileiro foi o Terra Brasil Notícias. No artigo “Financiando a desinformação: Análise dos sistemas de publicidade durante a eleição de 2022”, apresentado durante a 10º Compolítica, Marcelo Alves, pesquisador e professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-RIO cujo depoimento você ouviu no segundo episódio desta trilogia, coletou dados e analisou mais de 95 mil peças publicitárias do Terra Brasil Notícias, um dos maiores sites do tipo. Deste corpus, “44% (…) vieram do Google Adsense”.

Como funciona o modelo de negócio do Google? Sites ganham dinheiro com seus conteúdos veiculando anúncios escolhidos pelo Google. Mas a receita publicitária não fica inteira com os sites onde os anúncios rodam. O Google pega uma parte da verba por esse papel de intermediação. Não se sabe ao certo a divisão, mas estima-se que a partilha seja de cerca de 40%. Sejamos conservadores: definamos em 40%. Só nos últimos parágrafos a gente já falou do Google ganhando dinheiro com anúncios (sites e vídeos) e Super Chats golpistas e a Meta ganhando dinheiro com anúncios golpistas. É bom esclarecer que, da receita total do Google em 2022, só 11% veio do Google Network, onde o AdSense opera. Ou seja: está longe de ser fundamental para a solidez dos resultados trimestrais.

Fazendo uma conta de padeiro extremamente conservadora a partir dos dados já revelados a conta-gotas, pode-se inferir que, principalmente, o Google, mas também as outras plataformas já faturaram milhões de reais com conteúdo golpista e negacionista. Vamos lembrar que entre 2018 e 2020, o YouTube Brasil já tinha pago R$ 6,8 milhões para 12 canais bolsonaristas que atacavam repetidamente STF e Congresso durante a pandemia, segundo dados apurados pela Polícia Federal no inquérito dos atos antidemocráticos. Em outras palavras: o Google, a Meta e outras big techs no Brasil estão faturando com gente que defende golpe de estado e abolição do Estado Democrático de Direito no Brasil. O modelo de negócio aliado à omissão de Google, Meta e afins fornece “incentivos econômicos e modelos de financiamento das indústrias de desinformação”, como diz Silva.

“Ah, Guilherme, mas esse dinheiro para o Google Brasil é troco de pinga.” Possivelmente é verdade. Lá em 2016, a receita anual do Google no Brasil já tinha passado do US$ 1 bilhão. Isso, vamos lembrar, antes da explosão comercial do YouTube e da pandemia. O número hoje é certamente muito maior. O Google Brasil deve gastar mais com o Nespresso dos seus diretores mensalmente do que o dinheiro citado no inquérito. O ponto é: e daí? A única coisa que conteúdo golpista deveria render é cadeia. Se o Google ganhasse um real por conteúdo que golpista já seria muito. A gente só vai saber o quanto a big tech embolsou de dinheiro golpista quando eles abrirem os dados. Se depender da vontade deles, pode separar uma poltrona bem confortável enquanto espera esse dia chegar.

Além de lucrar, a big tech também terceirizou a moderação para um modelo conjunto: sempre que era questionada pela imprensa sobre conteúdo irregular na plataforma, a big tech pedia que jornalistas e pesquisadores mandassem os links para que eles fossem removidos. As plataformas usavam profissionais externos, como jornalistas e pesquisadores, para fazer um trabalho que, na teoria, deveria ser seu: monitorar a própria plataforma para evitar a publicação, circulação e viralização de conteúdos que quebrassem suas próprias regras ou, pior, a lei4. Essa “simbiose de moderação”, logo, funcionava apenas quando a merda já tinha batido no ventilador, nunca antes.

As plataformas só deram atenção plena quando a tal Festa da Selma já tinha se traduzido no pior ataque à República brasileira desde a Ditadura Militar iniciada em 1964. Sob seus narizes e usando seus serviços, milhares de golpistas se articularam e publicaram vídeos e fotos não apenas quebrando a lei, mas tentando destruir a democracia. Seis meses depois, “o Conselho de Supervisão da Meta (Oversight Board) afirmou que a plataforma errou ao não remover vídeos que incitavam a invasão a Brasília e descumpriu suas próprias regras de proibição de incitação à violência”, segundo a Folha. Até aí, Inês é morta, está putrefata e emitindo um cheiro insuportável.

No fim do 8 de janeiro, quando as intenções golpistas tinham saído de trás da metáfora de aniversário, se assumido explicitamente violentas e falhado mesmo com toda ajuda de agrupamentos da Polícia Militar do Distrito Federal, começou o esforço coletivo de calcular no colo de quem a bomba ia explodir e minimizar chances de explodir no próprio colo. As plataformas adotaram um protocolo parecido com as interrupções golpistas nas estradas logo após a proclamação da vitória de Lula, tirando do ar um grande volume de vídeos e fotos golpistas. Quantas? Só as plataformas sabem; esses microdados nunca foram divulgados. Neste caso específico, as plataformas tiveram a ajuda dos próprios golpistas: assim que a tentativa falhou e a sombra da responsabilização começou a pairar, muitos tiraram do ar por conta própria os conteúdos que publicaram para tentar escapar das punições5.

Parte de uma planilha com vídeos excluídos de youtubers extremistas.
Vídeos excluídos do YouTube. Imagem: Guilherme Felitti/Manual do Usuário.

Enquanto a tentativa de golpe se desenrolava, eu baixei da API oficial do YouTube dados sobre vídeos geolocalizados para a Praça dos Três Poderes publicados naquela tarde e publiquei o print da lista no Twitter. Tente acessá-los: muitos saíram do ar antes que o YouTube fizesse qualquer coisa. A exclusão de conteúdo sem o devido REPORT detalhado serve tanto aos golpistas como ao YouTube — ambos apagam rastros que facilitariam suas responsabilizações e dificultam a vida da sociedade civil e das forças de segurança.

Neste cálculo feito após o fracasso da tentativa de golpe e o rastro de destruição deixado, a big tech entendeu que, com os golpistas presos e eventualmente os ainda foragidos, uma hora a atenção da sociedade se voltaria a si. O entendimento foi correto. É aí, no fim da tarde de 8 de janeiro, que termina a segunda fase da big tech no processo eleitoral brasileiro em 2022 e começa a terceira fase, onde estamos agora. Após tentar forçar uma naturalidade artificial frente ao crescente golpismo nas estradas e nas portas dos quartéis, a tentativa de golpe de estado foi não apenas a gota, mas o balde d’água que fez o copo transbordar. Mesmo com o mise-en-scène, campanhas de PR e sorrisinhos falsos, não tinha mais como a big tech sustentar que tinha se esforçado o suficiente para evitar problemas do tipo. Começa aí uma campanha explícita para desarmar a bomba em contagem regressiva nos seus colos. É um esforço majoritariamente feito nos bastidores com um objetivo central: diminuir ou, melhor ainda, evitar punições, responsabilização e regulação.

A amostra é anedótica, mas vale o registro: na noite de 8 de janeiro, dois diretores do Google na América Latina vieram atrás de mim. Um, o de comunicação, me seguiu no Twitter e outro, de Trust & Safety, viu meu perfil no LinkedIn. Conversando com pesquisadores da área que tinham vocalizado críticas às posturas das plataformas no ciclo eleitoral, descobri que não fui o único.

Prints dos perfis de funcionários do Google no Twitter e LinkedIn.
Prints: Guilherme Felitti/Manual do Usuário.

Parte inegável desta terceira fase é se aproximar do Governo Lula para, de diferentes maneiras, tentar atrair certa simpatia. Essa ofensiva de charme não significa necessariamente chegar diretamente aos principais nomes, como o próprio presidente Lula, mas usar pessoas próximas às cabeças para influenciar. Há uma figura central aqui: a primeira-dama Rosângela Lula da Silva, a Janja. Em fevereiro e abril, a primeira-dama esteve em pelo menos dois encontros com representantes femininas da big tech para falar sobre serviços voltados às mulheres. Em fevereiro foi com uma diretora do Google. Janja publicou o encontro em seu feed nas redes sociais falando da reunião “com muitas ideias”. Em abril foi a vez de encontrar uma diretora da Meta para falar sobre um canal de atendimento pelo WhatsApp contra violência contra mulher. A executiva publicou o encontro, com direito a foto sorridente, no seu feed.

Em um momento de responsabilização de empresas diretamente responsáveis por uma tentativa de golpe que, convém manter alguma distância. Em novembro, um ano depois da vitória de Lula nas urnas, a primeira-dama disse em entrevista ao jornal O Globo que, em encontros com as plataformas, fez cobranças sobre as mentiras veiculadas a seu respeito aparecendo no topo dos resultados. Meno male. Justiça seja feita, Janja não foi a única — praticamente todos os ministérios e, especificamente, ministros e ministras — receberam contatos para encontros com executivos de big tech.

Um passo para trás para explicar como opera uma empresa enorme, não apenas da área de tecnologia: você tem uma divisão, normalmente chamada de “public policy”, com advogados e lobistas com a função primordial de se aproximar do governo (seja ele federal, estadual ou municipal). É uma operação fundamental para buscar contratos ou influenciar em decisões que impactam a operação da empresa. O Tecnocracia #9, publicado em março de 2019, fala exatamente disso usando como exemplo a Uber:

A Uber é um exemplo de como lobby pode alterar as regras para permitir uma operação que precisa encontrar seu espaço na base da cotovelada. Com a operação estabelecida, a máquina de lobby já montada ganha uma nova missão: evitar legislações que possam prejudicar o sucesso financeiro da empresa. No primeiro estágio, a startup se queixa que interesses escusos a impedem de entrar no setor e conclama seus fãs a agirem.

Quando já está garantida no setor, a empresa usa a divisão de public policy para minimizar ameaças, incluindo legislações que dificultem sua operação, e a divisão de parcerias para oferecer serviços gratuitos como uma forma de demonstrar boa vontade. É o espelhinho do colonizador para o índio. Você, cara pálida, já sabe nesta metáfora quem é a big tech.

A big tech já estava em contato com o governo Lula antes da posse, mas é inegável que, após o 8 de janeiro, algo mudou, principalmente pelo medo do que o governo poderia fazer com elas, segundo gente que acompanhou a relação. Nas reuniões, as empresas tentaram, mas tiveram dificuldades em manter o mesmo discurso de sempre. Com a violência explícita, ficou mais difícil taxar conteúdos de violência política, por exemplo, como “subjetivos”, algo que vinha sendo feito desde o início do processo eleitoral.

A boa vontade tinha uma exceção: o Twitter. O governo brasileiro marcou uma reunião com a plataforma e, de última hora, soube que Elon Musk7 participaria. Membros do governo brasileiro disseram a Musk que o perigo não tinha passado e ainda pairava um risco de golpe. Chegaram até a ler as regras do próprio Twitter mostrando como tweets ainda no ar a violavam explicitamente. Abre aspas para a Folha de S.Paulo, que detalhou a reunião:

Musk disse estar feliz porque a situação no país já estava sob controle, afirmou que a democracia brasileira era sólida e o Brasil era muito importante para a empresa. O lado brasileiro ressaltou que a tentativa de golpe tinha sido muito grave e ainda havia preocupações com o que vinha pela frente. Disse que o Twitter não estava aplicando suas próprias regras. Ao que Musk teria ressaltado ‘a importância de defender a liberdade de expressão’ e de examinar o ‘contexto’ das publicações. Ele disse que a empresa continuaria a seguir a lei, ainda que houvesse excessos nas decisões judiciais de um determinado juiz. Mesmo assim, e apesar das promessas de Musk, nada foi feito. O tuíte — e o vídeo — estão disponíveis até hoje no Twitter (rebatizado de X), sete meses após uma multidão invadir o Congresso, o STF e o Planalto, vandalizar as instalações e causar ao menos R$ 20 milhões em prejuízo.

A situação que já era tensa piorou no dia 5 de abril, quando um homem entrou armado em uma creche em Blumenau (SC) armado e matou quatro crianças entre 5 e 7 anos com uma machadinha e um canivete. Nos dias seguintes, conteúdo enaltecendo o assassino e sua ação, incluindo imagens, foram publicados nas plataformas. Pesquisadores(as) que estudam assassinatos em massa do tipo já chegaram ao consenso de que informar o nome e dar detalhes é uma forma de “endeusar” o assassino e inspirar outras pessoas a fazerem o mesmo. Menos de uma semana depois da matança, representantes do Governo Federal se reuniram com representantes das plataformas. O que o Twitter respondeu frente aos pedidos para remoção de conteúdos enaltecendo quem matou crianças? Abre aspas para a reportagem da Folha de S.Paulo:

O Twitter disse que divulgar fotos e nomes de autores de ataques a escolas não viola as regras da plataforma. Assim, a empresa entende que não precisa fazer nada porque o termo de uso permite a divulgação de material do tipo. Integrantes da pasta e representantes de outras redes sociais ficaram constrangidos e incomodados com a situação. Nesse momento, segundo relatos, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino (PSB), subiu o tom e disse que os termos de uso não se sobrepõem à Constituição e às leis e não são maiores que a vida de crianças e adolescentes. O ministro disse, ainda, que não há termo de uso para quem quer se comportar de maneira irresponsável e afirmou que a liberdade de expressão não autoriza a veiculação de imagens agressivas com o objetivo de difundir pânico nas redes sociais. Em seguida, a reunião foi encerrada. A reportagem tentou contato com o Twitter, mas recebeu apenas um email com um emoji de cocô.

Talvez você estivesse focado(a) numa sujeira mais grossa num prato ou a esteira apitou agora, então vamos repetir para que não existam dúvidas: depois de um massacre escolar que matou quatro crianças no Brasil, o Twitter se recusou a tirar do ar conteúdos que enalteciam o assassino porque, segundo eles, os conteúdos não quebravam as regras da plataforma. E tem gente que ainda endeusa este Pinóquio feito de estrume, não madeira, chamado Elon Musk.

Joana Varon

Olá! Eu sou a Joana Varon, fundadora e diretora executiva da Coding Rights, organização que trabalha com tecnologia, analisando as relações de poder por trás da sua utilização e desenvolvimento.

Há anos a gente acompanha violência de gênero e tecnologias e em eleições, em períodos eleitorais. A gente tem observado e monitorado principalmente temas de violência política de gênero. Nas eleições de 2022, preocupadas também com a integridade do processo eleitoral, manutenção do Estado Democrático de Direito, em balanço com a liberdade de expressão, juntamente com outras organizações parceiras, da Coalizão de Direitos na Rede, da Sala de Articulação contra a Desinformação (SADE), fizemos parte de um grupo que monitora a estuda, analisa o papel, entre outras coisas, o papel das plataformas dessas grandes empresas de tecnologia para fomentar um ambiente de violência política de gênero, de ódio, de desinformação.

Estou falando aqui mais especificamente da Meta, dona do Facebook, do Instagram, e do WhatsApp; do Google, que tem o buscador e o YouTube; o Twitter, no caso X; Telegram também. Estou falando principalmente de redes sociais, e o que acontece hoje é que o modelo de negócio das redes sociais é baseado, como todo mundo sabe, no tempo de tela que a gente fica nessa rede, vendo publicidade, marcando likes, compartilhando ou produzindo dados também para essas redes. E conteúdo de ódio, conteúdo desinformativo é muito mais polêmico, então tem mais engajamento. Então a gente sabe, já provado, que essas redes ganham mais com esse tipo de conteúdo.

Isso já é problemático, porque o ambiente fica tóxico. No contexto de eleições, é mais problemático ainda, porque a gente está debatendo propostas de país. O que a gente observou foi que, indiferentes ao contexto eleitoral, contexto da democracia brasileira, essas plataformas seguiram lucrando absurdamente e em desrespeito também à nossa legislação nacional, mais especificamente a lei eleitoral. Mas não só, também sem aplicar os próprios termos de uso que elas mesmos escreveram. Então a gente observou que conteúdo repetidamente denunciado como desinformação eleitoral continuou online, continuou podendo ser impulsionado. Observamos que canais também repetidamente denunciados, porque é um conteúdo de ódio, conteúdo que afeta a integridade do processo eleitoral, afeta a manutenção do Estado Democrático de Direito, esses canais continuaram online, não só online, como também sendo monetizados, sendo recomendados, sendo priorizados nas recomendações, inclusive de mecanismos de busca. Tanto as plataformas quanto as redes que estavam produzindo esses conteúdos contra o processo eleitoral, com desinformação, conteúdos atentando o Estado Democrático de Direito, estavam sendo monetizados, ganhando dinheiro junto com as plataformas.

Fora a questão dos anúncios, que continuaram sendo vinculados, anúncios eleitorais em plataformas geridas por Google e Meta, sem passar pelo devido processo de autorização requerido pelo Tribunal Superior Eleitoral. Então isso tudo deu no que deu, né? Na depredação dos prédios que simbolizam os Três Poderes de uma democracia, e para uma coisa escalonar até aí, a gente observou que mesmo depois do resultado das eleições, que esse resultado estava validado por órgãos internacionais, pelo nosso Tribunal Superior Eleitoral, as postagens contra a integridade do sistema, contra o resultado das eleições, no dia e logo após o pleito, chamando para atos violentos, se propagavam por todas essas redes, sem qualquer moderação de conteúdo nos termos de serviço das redes, de acordo com a nossa lei.

Mesmo as plataformas, por já terem vivido isso na invasão do Capitólio, mesmo a gente já tendo conversado com representantes dessas plataformas de que isso poderia acontecer no Brasil, porque a extrema-direita segue aí uma cartilha, nada foi feito como precaução e a nossa democracia ficou aí a Deus dará. As deusas dessa vez cuidaram, mas não é assim que se gera um negócio e não pode ser assim que caminha uma democracia.

A postura injustificável e revoltante do Twitter se somou à responsabilização pelo 8 de janeiro e criou uma onda forte demais para ser rebatida só com press releases e parcerias pela big tech. Legislar envolve também a percepção pública sobre os envolvidos. E a relutância do Twitter manchou a reputação de “grandes empregadores” que a big tech relembra para a sociedade sempre que o tema responsabilização surgiu — pode ver, sempre que o papo surge, o Google, a Meta e a Uber dizem que empregam milhares de brasileiros, distribuem milhões de reais, pagam impostos e afins. Como se gerar empregos te desse cartão verde para operar sem regras — a gente já viu isso com as construtoras, mas isso é papo para outro dia.

Proteger quem mata criança cruzou tantas linhas que chamou a atenção da sociedade e mostrou de forma evidente a necessidade de regulamentar e responsabilizar as plataformas.

Para o próximo passo, vamos falar um pouco sobre o processo legislativo: a cada legislatura, milhares de projetos de leis são apresentados na Câmara e no Senado. Destes, poucos sobrevivem até virarem lei. O padrão é que os projetos sejam apresentados e morram de inanição em gavetas. Em algumas raras vezes, eles nascem e ficam dormentes até que surge o momento político ideal para que ressuscitem e fiquem sob as luzes da ribalta.

Foi exatamente este o caso do projeto 2630/2020, apresentado pelo senador Alessandro Vieira (CIDADANIA-SE) em 13 de maio de 2020. O projeto, que pretendia estabelecer “normas relativas à transparência de redes sociais e de serviços de mensagens privadas, sobretudo no tocante à responsabilidade dos provedores pelo combate à desinformação e pelo aumento da transparência na internet”, foi aprovado no plenário do Senado em julho de 2020 e, como parte da tramitação, remetido à Câmara dos Deputados. Na Câmara, o PL entrou nas filas das comissões e hibernou durante pouco menos de três anos. Duas semanas depois da postura petulante do Twitter, a Câmara dos Deputados aprovou a urgência do PL. O 2630/2020 voltou à vida com mais holofotes do que jamais teve, não apenas pela percepção de irresponsabilidade das plataformas, mas também pela articulação do Governo Lula na Câmara.

Aqui tem muita coisa que a gente pode falar do 2630 e falar sobre projeto em tramitação é tentar acertar um alvo que ziguezagueia, sempre em movimento. O resumo da minha percepção é que tem alguns pontos dos quais eu discordo bastante — essa ideia de querer pendurar tudo no PL para aproveitar a aprovação, como pagamento para artistas, é um erro não pelo pagamento, mas por deformar a ideia principal do projeto8. De maneira geral, porém, o projeto introduz uma série de responsabilidades e punições que, hoje, não existem para plataformas digitais no Brasil.

Um dos motes iniciais do Tecnocracia é que as empresas de tecnologia se tornaram tão grandes que, querendo ou não, usando ou não, as ações delas impactam sua vida. Frente à possibilidade de uma lei que impõe limites, define responsabilidades e prevê punições, não havia dúvidas de que a big tech jogaria todo seu peso contra a lei.

A resposta de Google, Facebook, Telegram e Twitter contra o PL 2630 envolve abuso de mercado, milhões de reais pagos a advogados, lobistas e assessores, divulgação de mentiras descaradas e FUD 9 e aliança com o mesmo grupo que atacou o sistema eleitoral e a democracia brasileiros.

Vamos analisar a estratégia separada por dois públicos-alvo: a sociedade para retomar uma percepção de bem coletivo e os deputados que votariam na aprovação.

Comecemos pelo lobby na Câmara. Abre aspas para apuração dos repórteres Daniel Weterman e Julia Affonso no Estadão:

O Google e a Meta — controladora do Facebook, Whatsapp e Instagram – lideraram uma operação de pressão e lobby para derrubar o Projeto de Lei 2630, o PL das Fake News, da pauta do Congresso brasileiro. Ao longo de 14 dias, as empresas e outras big techs atuaram fortemente para deputados se posicionarem contra a proposta, com ameaças de retirar conteúdo das redes sociais e disseminação de uma campanha de ataques às contas deles na internet. Um monitoramento do Estadão revelou que a pressão das empresas fez com que pelo menos 33 deputados mudassem de posicionamento entre a aprovação do requerimento de urgência, dia 19 de abril, e a retirada de pauta, em 2 de maio. Um site, hospedado nos Estados Unidos, foi aberto para mostrar o voto de cada um. Os internautas foram instigados a mandar mensagens para aqueles que se diziam a favor ou ainda não tinham se colocado claramente contra. (…) As empresas estrangeiras montaram uma operação online e offline. Nos gabinetes, lobistas atuaram para convencer deputados a recuar. Nas redes, as plataformas fizeram campanhas abertas contra o projeto e deram voz a internautas para pressionar deputados que se posicionaram a favor ou estavam indecisos.

Em conversas com integrantes da direita e da bancada evangélica no Congresso, lobistas do Google e de outras plataformas digitais ameaçaram apagar conteúdos dos parlamentares se o PL das Fake News fosse aprovado. A lógica deles era a seguinte: a lei forçaria as empresas a classificarem o que era fake news ou não e apagar conteúdos considerados sensíveis. É a chamada “moderação de conteúdo”, tão temida por parlamentares que vivem das redes sociais para falar com o público e ganhar dinheiro com monetização. Não por acaso, a bancada evangélica passou a difundir mensagens sobre o risco de censura a versículos da Bíblia. Um dos disseminadores desse alerta foi o então deputado Deltan Dallagnol. Na época, o relator do projeto, Orlando Silva (PCdoB-SP), classificou essas mensagens como “fake news”.

Esse trecho da reportagem do Estadão mostra outro lado da operação de lobby do Google: além das ameaças, organizações ligadas à big tech alimentaram deputados da oposição com interpretações delirantes sobre o que aconteceria caso a lei fosse aprovada. A principal linha de ataque aqui foi o FUD religioso, já explorado exaustivamente pelo bolsonarismo durante a campanha eleitoral. Abre aspas para o repórter Edoardo Ghirotto na coluna de Guilherme Amado no Metrópoles:

Deputados evangélicos disseram à coluna que receberam de lobistas da Meta, empresa que controla o Facebook, o Instagram e o WhatsApp, um documento que levantava a possibilidade de o PL das Fake News censurar postagens de cunho religioso. Os parlamentares entenderam que o documento havia sido produzido pela própria Meta. A companhia negou a autoria e também ter repassado o documento. Após a publicação da reportagem, uma associação de que o Facebook e outras plataformas fazem parte, a Câmara Brasileira de Economia Digital, assumiu a autoria do texto. O documento é apócrifo, ou seja, não tem timbre ou nada que identifique que tenha sido produzido pela Câmara Brasileira da Economia Digital (camara-e.net). Também fazem parte da entidade o Google, o TikTok, o Kwai e o Twitter, entre outros.

O documento destacava seis versículos da Bíblia que, segundo a interpretação delirante, seriam banidos da internet caso a lei avançasse.

Quem repetiu o “argumento” foi a Frente Parlamentar Mista de Economia e Cidadania Digital. O nome é pomposo, mas pode chamar de Bancada da big tech, parlamentares alinhados aos interesses das grandes plataformas. A gente já falou sobre isso no Tecnocracia #59 citando uma reportagem fundamental da jornalista Tatiana Dias no site The Intercept, em 2021: a big tech, liderada por Google e iFood, estava há anos se mobilizando e se aproximando de parlamentares no Congresso para formar uma “tropa de choque” que defendesse seus interesses na casa. Foi dali que surgiu o infame Prêmio Turing dado a Arthur Lira (PP-AL) em outubro de 2021 — vou repetir a piada: já não basta o que fizeram com o Turing em vida, ainda tem isso em morte. O investimento está se pagando.

Lembra da mamadeira de piroca em 2018? A mamadeira de piroca do 2630/2020 foi a “censura de religião” — deputados como o agora cassado Deltan Dallagnol e Bia Kicis repetiram versões da mentira forjada pela big tech. Aqui, a big tech se alinhou ao mesmo grupo político que ajudou a atacar o sistema eleitoral brasileiro. Não chega a impressionar, mas é sempre bom notar como os comunicados da big tech contra o 2630/2020 quase sempre repetem teorias da extrema-direita equivalendo regulação à censura e/ou fim da liberdade de expressão.

Para chegar à sociedade, a big tech usou a si mesma: o Telegram disparou uma mensagem agressiva para todos os usuários da plataforma e o Google colocou um link na sua página inicial para um artigo em que, entre mentiras, defendia que a lei tornaria a internet pior. A página inicial do Google é um espaço sacrossanto, raríssimas vezes ocupado por qualquer outra coisa que não a caixa de busca — quando o Steve Jobs morreu, por exemplo, lá estava uma curta homenagem, o que mostra o tamanho da ação do buscador no Brasil.

“Mas, Guilherme, eles precisam participar desse debate. Se fosse uma lanchonete poderia, então porque não pode o Google?” Todos os impactados devem participar, sim, mas, bonito e bonita, a lanchonete não controla sem qualquer transparência o meio no qual bilhões de pessoas se comunicam diariamente. Quem garante que a big tech não vai colocar o dedinho na balança para beneficiar a si mesma, seja com conteúdo próprio ou externo que repita seus pontos? Pesquisa do NetLab descobriu que o Google estaria “privilegiando links de conteúdo de oposição ao PL nos resultados das buscas sobre o projeto de lei, além de anúncios do próprio Google criticando a nova legislação”, segundo a Folha. O Google se defendeu falando que não tinha feito nada demais, que o sistema era assim, aquele blablabla de sempre. Mas como tirar a dúvida? Não tem como. É palavra contra palavra e a gente já viu que big tech não mente nunca 10. O argumento da lanchonete implode por uma questão de escala: ao usarem suas próprias plataformas para influenciar o debate, a big tech corroborou a necessidade de existirem freios e contrapesos à sua atuação.

As mensagens de Google e Telegram em suas próprias plataformas motivaram um inquérito na Polícia Federal e o ministro Alexandre de Moraes mandou suspender o Telegram no Brasil de novo, caso o aplicativo não deletasse a mensagem enviada à base. A Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) também notificou o Google por publicidade abusiva. O diretor de relações governamentais e políticas públicas do Google, Marcelo Lacerda, e o presidente do Google na América Latina, Fábio Coelho, “foram ouvidos no último dia 15 pela equipe da PF encarregada dos inquéritos que tramitam em tribunais superiores”. Dados do próprio Google mostram que a empresa gastou R$ 2 milhões na investida.

Em junho, outro indício explícito de desigualdade de relações: o Google “só” contratou Michel Temer para atuar nas negociações sobre regulação. Não há maior indício da desigualdade de relações do que contratar um ex-presidente sem um histórico de atuação em assuntos cibernéticos. O plano é claramente engrossar o lobby. Temer disse que atuava desde maio com “mediação” junto a parlamentares. Ainda em junho, a Câmara marcou uma audiência e convidou a big tech a responder questionamentos de parlamentares. A audiência foi desmarcada depois que Telegram, Google e Twitter ignoraram o convite, Meta recusou e Spotify impôs condições. Tal qual Bolsonaro, a big tech só responde no seu cercadinho.

A essa altura, a votação em urgência do PL 2630/2020 já tinha sido adiada por Lira entender que a matéria não passaria no plenário. O esforço nos bastidores da big tech em mudar votos com ameaças e mentiras funcionou. Chegamos ao presente. A fase em que estamos é essa: a big tech sem qualquer escrúpulo de mostrar que a guerra é aberta e o objetivo é fugir de qualquer regulamentação e responsabilização. Em janeiro de 2022, com a eleição esquentando, eu publiquei o Tecnocracia #59 com o título “No Brasil, big tech quer ganhar dinheiro e fugir das responsabilidades”. Infelizmente, minha bola de cristal estava bem polida.

Clarissa Tavares

Oi! Meu nome é Clarice Tavares, sou coordenadora da área de desigualdade e identidade do InternetLab. O InternetLab é um centro de pesquisa em Direito e Tecnologia sediado em São Paulo. A gente vem pensando o fenômeno da violência política com o enfoque especial na dinâmica de gênero e raça desde 2022 no pleito municipal. Fizemos essa análise sobre violência política de gênero e de raça, principalmente com o Monitora, que é uma parceria do Internet Lab com a Revista Azmina, que é um observatório de violência política de gênero em que a gente faz um monitoramento de diferentes perfis de candidaturas de mulheres de diversos partidos diferentes, de esquerda a direita, em todo o Brasil, para entender como a internet impacta essas candidaturas, como essas candidaturas se protegem ou não da violência política nas redes sociais, como a violência política também, em alguma medida, sequestra o próprio debate que essas candidatas tentam conduzir online.

Em 2020, a gente conseguiu notar que existe uma desproporção em relação ao número de ataques que candidatas mulheres recebem em comparação a candidatos homens, por exemplo. Existe também uma diferença muito significativa no conteúdo desses ataques.
De um lado, as mulheres são atacadas principalmente por elas serem quem são. Então existe um ataque muito grande relacionado a seu corpo, a uma suposta capacidade intelectual, uma capacidade política das mulheres. Existe também um aspecto muito grande de uma gordofobia, em que essas mulheres são atacadas por serem quem elas são, pelos corpos que têm, e muitas vezes a atuação política em si não está em jogo. Por exemplo, em 2020 tivemos uma média de 40 tweets ofensivos por dia, direcionado às candidatas que monitoramos. Nas eleições gerais de 2022, a gente fez mais uma edição do Monitora, fazendo esse acompanhamento da violência política no Twitter, no Instagram, no YouTube e no Facebook de diversas candidatas.

Percebemos um fenômeno muito parecido de violência. Existe uma continuidade de violência entre as últimas eleições. Mesmo que o tema da violência política tenha ganhado um destaque, tenha tido uma lei aprovada entre esse período de 2020 a 2022, a gente percebe que a violência política continua sendo uma questão, que as plataformas ainda não têm agido de formas suficientemente eficaz no enfrentamento dessa violência política.

Isso tem um impacto muito direto na participação política dessas mulheres, que se vêem tendo que ter uma equipe muito específica para lidar apenas com a violência que elas recebem online. Tem que ter uma equipe jurídica, e muitas vezes elas não necessariamente recebem todo o apoio das plataformas desse enfrentamento. Acho que esse cenário de violência política de gênero também mostra um um desafio democrático para uma participação mais efetiva de mulheres na política, em que existe uma atuação mais forte das plataformas. Acho que de 2020 para 2022, por exemplo, a gente percebe que o tema da violência política passa a ser mais central no debate das plataformas, com ações mais específicas, mas ainda assim é um cenário insuficiente, dado a quantidade de violência que está espalhada pela internet, e dado também a massificação dessa violência.

Acho que a massificação da violência política durante o período eleitoral é um desafio que as plataformas ainda não sabem como endereçar. Acho que não são só as plataformas, acho que até a sociedade civil e o poder público ainda tem esse problema a lidar, como pensar com esse avanço de uma violência política que também se utiliza de ferramentas digitais e de ferramentas offline para inibir e atacar a candidatura de mulheres.

Três episódios, quase três horas de conteúdo. Vamos amarrar essa bagaça. Eu quero me focar em dois pontos. O primeiro é sobre o futuro.

O futuro não é otimista

As decisões que a big tech tomou em 2023 para os EUA pintam um cenário que não indica melhora. De todos os lados vê-se um esforço para desmontar estruturas de combate à desinformação — eleitoral, inclusive — e diminuir a transparência com dados abertos. Sob o esterco-humano, o Twitter desmontou o grupo de moderação e public safety, recuperou contas banidas por infração das regras e virou um paraíso de golpistas, antivaxx, nazistas e todo tipo de crime, segundo estudo publicado em fevereiro de 2023 pelos grupos Combat Antisemitism Movement (CAM) e Network Contagion Research Institute (NCRI). Em junho, “o YouTube disse que não vai mais derrubar conteúdos que alegarem fraude na eleição presidencial de 2020 nos EUA, revertendo sua política de integridade eleitoral” para não “suprimir discurso político”, segundo o Núcleo. Também em junho, o Facebook anunciou o fim da política para excluir conteúdos desinformativos sobre covid-19, segundo a Agência Lupa. Abre aspas para reportagem do New York Times em fevereiro de 2023:

Mês passado, o YouTube sem alarde reduziu seu pequeno time de experts em policy responsável por lidar com desinformação, segundo 3 pessoas por dentro da decisão. Os cortes, parte da redução de 12 mil empregados pela holding que administra o Google, a Alphabet, deixou apenas uma pessoa responsável pelas políticas de desinformação no mundo todo, segundo uma fonte.

Depois de criar regras mais severas nos últimos anos para lidar com ondas de desinformação sobre a pandemia de covid-19, a guerra da Rússia contra a Ucrânia e a integridade de eleições ao redor do mundo, há uma tendência da big tech de reverter tudo isso, segundo o jornal. “Frente a obstáculos financeiros e pressões políticas e legais, as gigantes de mídias sociais deram sinais que combater informações falsas online não é mais uma alta prioridade, suscitando medo entre experts que acompanham a questão de que a confiança online será ainda mais erodida.” Se nos Estados Unidos, que é o maior mercado no mundo todo e, logo, é a prioridade, a big tech está largando mão de políticas e métodos de moderação, imagina em mercados coadjuvantes, como o brasileiro. Ao mesmo tempo, o Legislativo vem mantendo o assunto à margem. Em 2024, tudo indica que as eleições municipais ocorrerão sem regras específicas.

O desmonte não está apenas nas equipes de policy. Ao tornar APIs proibitivamente caras ou encerrar endpoints específicos sem alarde, a big tech vai se tornando mais opaca. Quem em sã consciência tem US$ 42 mil ou até mesmo US$ 5 mil mensais para gastar nos pacotes da API do Twitter sob Musk? (Existe um pacote de US$100 mensais, mas como analisar a plataforma com apenas 10 mil posts por mês?) Como checar os vídeos recomendados pelo YouTube depois que a plataforma desativou o endpoint da sua API? Tem mais um dificultador: figuras da extrema-direita passaram a processar quem analisa dados sobre as estratégias digitais de figuras políticas. Eu mesmo fui alvo de dois processos do tipo, mas isso é um assunto para depois.

Essa crescente opacidade das plataformas e as consequências para o futuro compõem o primeiro ponto.

O segundo ponto envolve o passado, questões que ainda não sabemos sobre a atuação da big tech nas eleições brasileiras. Pelas últimas três horas eu elenquei um monte de indícios públicos sobre omissão de moderação, impulsionamento de golpismo e financiamento de desinformação por parte das plataformas. Espero que o cenário esteja suficientemente claro. Mas ainda tem um monte de coisas que não sabemos, a começar por grana. Fazendo os três roteiros, algumas vezes pipocavam algumas dúvidas que eu não sabia responder. Pesquisei e falei com gente do mercado para ver se eles conseguiam esclarecê-las, mas, mesmo com ajuda, ninguém foi capaz de solucioná-las. Nós somos sociedade civil. Podemos, no máximo, analisar dados abertos, conversar com a imprensa e falar nas próprias redes sociais. Mas a regulação não vem da sociedade civil: o Governo Federal tem ferramentas.

Vamos às dúvidas:

  1. Quanto dinheiro Google, Facebook, Twitter e afins ganharam com a veiculação de publicidade em conteúdos que atacavam o sistema eleitoral e o Estado Democrático de Direito? Uma conta de padaria rápida nos sugere que o valor facilmente ultrapassou os milhões de reais, mas essa margem aqui é ampla. Aqui eu estou considerando todo tipo de publicidade: anúncios antes ou durante vídeos e Super Chats no YouTube, anúncios veiculados pelo Google AdSense, anúncios veiculados no Facebook e no Instagram, anúncios veiculados no Twitter e outras formas de monetização. Reiterando: se fosse um real, já seria demais.
  2. Esse número do dinheiro não está inteiro se não somarmos quanto dinheiro os golpistas arrecadaram de forma indireta, pedindo doações em seus Pix em vídeos no YouTube, mensagens no Telegram e posts no Instagram enquanto quebravam Brasília e tentavam dar um golpe de estado. Alô, Banco Central: quanto dinheiro os Pix em conteúdos golpistas movimentaram?
  3. Quando está sob pressão, a big tech gosta de divulgar quanto dinheiro contribuiu à economia brasileira, dizendo a quantia que movimentou e quanto seus creators e motoristas (no caso do Uber) ganharam. Ok, é parte do jogo. Já que estamos falando sobre dinheiro da big tech para brasileiros, quanto o/as executivo/as que lideram as operações nacionais destas empresas estavam colocando no bolso, entre salário e bônus, enquanto a omissão da big tech permitia, impulsionava e monetizava conteúdos golpistas e criminosos? Quais foram os gatilhos para bônus financeiros destes executivos no período eleitoral?
  4. As plataformas divulgam números brutos genéricos globais de moderação para dar a impressão de uma limpeza extraordinária. Para entender exatamente, no entanto, se o esforço foi suficiente: quantos vídeos, fotos, posts e tweets mentindo para atacar o sistema eleitoral, conclamando golpe de estado e ameaça de dano físico ou assassinato de autoridades foram deletados pelas plataformas? Mais que um número fechado, que posts foram estes com identificadores únicos para cada um? Mais importantes que tudo: estes posts deletados representavam qual percentual do total de posts criminosos?
  5. Para detalhar como anda a moderação da plataforma, quais posts foram excluídos quando e por qual razão? As punições previstas nas regras da plataforma foram executadas? É absolutamente fundamental que exista maior transparência para que a sociedade entenda como as plataformas onde passamos muitas horas do nosso dia se movimentam para tornar o ambiente mais seguro a nós, nossos queridos e a sociedade. Sem contextualizar e detalhar a ação de moderação, com microdados para análise externa, qualquer ação cheira a estratégia de PR.

Ufa. Um último recado depois de 3 horas de podcast: se você trabalha na big tech e está ouvindo este episódio por diversão ou até por obrigação (às vezes é seu trampo ouvir o que estão falando para medir o potencial risco), saiba que seu trabalho, no pior dos casos, indiretamente ajudou tudo isso que eu descrevi. Eu tenho certeza absoluta que a imensa maioria dos funcionários das operações brasileiras de Google, Facebook e Twitter discorda radicalmente de posicionamentos políticos extremistas, como negar a eficácia da vacina, duvidar da urna eletrônica e querer golpe de estado.

Existe uma expressão que a Luciana Gimenez11 chamaria de “sugarcoat”: você pega uma situação ruim e a enche de açúcar para ela não parecer tão ruim. É o popular “dourar a pílula” no Brasil. Seu trabalho ajudou a viabilizar e, em alguns casos, até decidir por tudo isso que eu expliquei. Você pode dourar esta pílula ou colocar 10 quilos de açúcar, mas esta ainda é uma conclusão amarga. Eu sei, a vida é difícil, os boletos estão desinteressados em doce ou amargo. Muita gente já decidiu que não quer ajudar a diminuir a cobertura vacinal, atacar o sistema eleitoral ou viabilizar golpe de estado enquanto poucos ficam milionários.

Pensa se é este banquete que seu suor vai financiar.

Foto do topo: Joedson Alves/Agência Brasil.

  1. Eu não consigo escrever ou ler este trecho sem respirar aliviado e dar um sorriso.
  2. Ah, o humor auto-depreciativo…
  3. Pelas regras do YouTube, 30% do valor de cada Super Chat fica com a plataforma.
  4. Essa discussão tem nuances: segundo o Marco Civil da Internet, plataformas só são obrigadas a remover conteúdo ilícito/ilegal por decisão judicial.
  5. Ghedin complementa: juridicamente, “isso é ineficaz, salvo engano. As plataformas são obrigadas a guardar conteúdo por pelo menos 6 meses.”
  6. Eu disse no último episódio da temporada passada que um dos meus objetivos em 2023 era falar o menos possível deste sujeito. Falhei.
  7. Na política brasileira isso tem nome: é o jabuti em cima da árvore. Como jabuti não sobe em árvore, alguém o colocou lá. A Agência Lupa explica melhor.
  8. FUD é a sigla em inglês para “medo, incerteza e dúvida”, uma técnica para infundir dúvida e caos informacional quando se quer turvar as águas do debate.
  9. Pelamordedeus, é ironia.
  10. E você achando que ela não ia aparecer…

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Este é o terceiro episódio de uma trilogia. Ao contrário de algumas das principais trilogias do cinema, é muito provável que você entenda tudo que eu vou descrever aqui, mas, tal qual em House, embora os episódios funcionem de forma independente, eles se complementam quando unidos. Ao contrário de House, aqui não tem o médico manco tendo uma epifania e criando um “deus ex-machina” lá pelo 36º minuto do episódio para que ele termine com a resolução do problema. Nas eleições brasileiras, tudo que poderia ter acontecido, aconteceu. Ou quase tudo — e não graças à big tech, mas a gente já chega lá.

Você vai entender tudo que eu disser aqui, mas eu farei referência a uma série de episódios e análises feitas nos dois episódios anteriores. Se você ainda não ouviu e o tempo, a paciência e/ou o interesse permitirem, pare este episódio e volte para os dois anteriores. No Tecnocracia #74, nós falamos do período anterior à eleição, com o bolsonarismo construindo sob os olhares moucos das plataformas duas teorias delirantes (a da fraude eleitoral e do artigo 142) e o TSE definindo regras e fechando acordos com as plataformas. Já o Tecnocracia #75 vai do primeiro turno até o último dia da presidência de Jair Bolsonaro1, com o bolsonarismo executando a estratégia cultivada nos anos anteriores ao gritar “fraude” e as plataformas agindo com mais afinco que o normal, mas ainda longe do ideal.

Este terceiro episódio pega o período a partir da posse de Luiz Inácio Lula da Silva, em 1º de janeiro de 2023, para seu terceiro mandato como Presidente da República. É uma semana a partir da posse que se desenrola a terceira fase da postura da big tech no Brasil frente ao golpismo explícito do bolsonarismo. Após fingir que tudo estava sob controle nas fases anteriores (com mais afinco na segunda fase, com a base bolsonarista pedindo golpe de estado nas estradas e na frente dos quartéis), a big tech foi obrigada a abandonar qualquer teatro de normalidade quando milhares de criminosos quebraram as sedes dos Três Poderes em Brasília no 8 de janeiro.

Sai a normalidade forçada, entra uma estratégia feroz nos bastidores para evitar ou diminuir a responsabilização pelo papel que todas inegavelmente tiveram — principalmente por omissão — no processo golpista. Essa postura se fortalece quando volta a tramitar com renovado interesse um projeto de lei, o 2630/2020, que busca impor obrigações e prevê punições em caso de descumprimento por parte das plataformas. Tão acostumada a operar quase sem nenhuma regulamentação, a big tech se esforçou em reuniões a portas fechadas para continuar sem amarras legais.

O Tecnocracia é um podcast sem frequência definida em 2023 que aborda todos os impactos — positivos, mas também negativos — que a popularização da tecnologia causa nas nossas vidas. Para pensar algo sobre o assunto e abordar alguns temas espinhosos, eu misturo jornalismo, análise de dados, livros e humor tacanho. Eu sou o Guilherme Felitti e o Tecnocracia está na campanha de financiamento coletivo do Manual do Usuário, a partir do plano que custa R$ 16 por mês. Se você quer ajudar o Tecnocracia, o Manual, os dois ou só dar dinheiro para gente, acesse esta página.

O cenário estava posto: Lula ganhou nas urnas e Bolsonaro fugiu do país dias antes da posse. O TSE teve que agir de forma mais assertiva no primeiro e segundo turnos após as plataformas fazerem corpo mole e o bolsonarismo, inconformado com a derrota e preso numa realidade paralela, já tinha apelado à violência e ao terrorismo quando tentou invadir a sede da Polícia Federal no dia da diplomação de Lula ou explodir um caminhão-tanque perto do Aeroporto de Brasília na véspera de Natal. Para qualquer pessoa mais atenta, já estava claro que ganhar a eleição foi um passo considerável, mas ainda existiam vários problemas a se resolver — a forma como as Forças Armadas mergulharam na política e se entranharam no Executivo era um dos principais. O radicalismo do bolsonarismo também não dava qualquer indício de recuo.

Há um momento óbvio que define esta terceira fase: o 8 de janeiro. Se havia alguma estratégia da big tech para se aproximar do governo Lula, ela implodiu ao fim da primeira semana de governo. O risco de uma tentativa de golpe de estado organizada nas redes e perpetrada na vida real por bolsonaristas já estava no radar de todos. Para o episódio, eu fui atrás de alguma previsão sobre o 8 de janeiro depois que o trumpismo instituiu que autocrata-wannabes saem do poder após tentar dar um golpe de estado organizado digitalmente.

No Tecnocracia, um dos principais problemas da pesquisa é encontrar poucas referências. Para o risco de replicação do 6 de janeiro de 2021 norte-americano no Brasil, a questão é o contrário. A alegação de fraude eleitoral, a articulação online e o golpismo do chefe do movimento eram tão parecidos que quase todo mundo cantou a pedra ainda em 2021. Na Americas Quartely, Brian Winter previu em março de 2021: “Um Bolsonaro inseguro prepara seu próprio 6 de janeiro”. A previsão foi tão popular que você ouviu até no Tecnocracia #432:

Trump foi o primeiro grande case de projeto de tirano que usou tecnologias contemporâneas (smartphones, redes móveis, redes sociais) contra uma democracia estabelecida. Enquanto a big tech não fechar as portas que continuam escancaradas, outros, já cientes do caminho e das razões pelas quais a primeira tentativa não deu certo, tentarão. E, para fechar essas portas, é bom que o controle não esteja totalmente na mão de quem já deu indício atrás de indício de possuir uma régua ética terrível. Porque com certeza nós teremos novas tentativas. A próxima, inclusive, já tem data e local: outubro de 2022, sessão eleitoral perto da sua casa.

Atrasou dois meses e meio, mas veio. Aparentemente, todo mundo sabia. Se eu tivesse que apostar meu dinheiro, diria que, dentro da big tech, a maioria sabia. O problema não é saber, são os incentivos internos e a estratégia da empresa como um todo. Mas saber e não agir — por que não quis ou a sede internacional não deixou — tem o mesmo resultado de não saber.

Como acontece o 8 de janeiro? Após semanas de tensão pela possibilidade de mais um absurdo bolsonarista ocorrer durante a posse, o fato da cerimônia ter transcorrido sem grandes incidentes deu um alívio generalizado. Mas nos dias posteriores à posse, alguns pesquisadores e jornalistas começaram a soar o alarme: existia algo grande sendo organizado.

A senha online era a expressão “Festa da Selma”. Sob a temática de uma festa de aniversário, a convocação para o que parecia uma manifestação detalhava os ingredientes para festa com jogos de palavras: é preciso de “açúcar União” (não pode ser outro, alegavam os posts) e 5 espigas de milho (uma tentativa de camuflar a necessidade de 5 milhões presentes). Há também uma citação a “Ayrton Senna + 4”, mas o Sherlock aqui falhou completamente em entender. Em grupos bolsonaristas, circulavam convites para caravanas gratuitas partindo de diferentes cidades para Brasília. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) publicou milhares de mensagens trocadas pelos golpistas em grupos públicos de Telegram para acesso público. A investigação posterior da Polícia Federal (PF) descobriu alguns dos financiadores não apenas das caravanas, mas também da infra-estrutura dos acampamentos golpistas na porta dos quartéis, com fluxo constante de comida, bebidas, barracas e banheiros.

Milhares de pessoas marcharam das portas de quartéis, inclusive do Quartel-General do Exército, chamado de Forte Caxias, em direção à Praça dos Três Poderes. Ao chegarem lá, romperam barreiras montadas e contaram com a falta de policiamento para invadirem e depredarem os prédios que funcionam como sedes dos três poderes da República. Na sede do Supremo Tribunal Federal (STF) o plenário foi destruído, com janelas quebradas, as cadeiras dos ministros arrastadas para rua, togas vestidas por golpistas e a porta do gabinete do ministro Alexandre de Moraes arrancada. No Palácio do Planalto, além de destruir gabinetes e repartições, o grupo quebrou itens centenários, rasgou as fotos de todos os presidentes expostos e depredou obras de arte. No Congresso, além da depredação de gabinetes, golpistas tomaram os lugares principais das Mesas Diretoras da Câmara e Senado.

João Guilherme Bastos dos Santos

Olá! Meu nome é João Guilherme, sou pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital, diretor de análises e estudos temáticos do Democracia em Xeque e também membro do International Panel for the Information Environment. Eu trabalho no combate a campanhas de desinformação em três principais áreas, que são saúde (principalmente relacionada à pandemia e vacina), ataque a instituições democráticas (pegando tanto eleições quanto outros períodos), e questões relacionadas ao meio ambiente e negacionismo relacionado à emergência climática.

Bom, para falar um pouquinho da eleição de 2022, acho muito importante pensar no modo como o resultado da eleição pode ter mudado a avaliação de muitas pessoas sobre o que aconteceu. Em 2018, a gente teve um candidato de extrema-direita vencedor, isso foi colocado em grande medida na conta das plataformas e aplicativos de redes sociais online, e por isso as pessoas procuraram retrospectivamente quais eram as pistas disso que a gente tinha, quais potenciais problemas poderiam ter se evitados e uma série de outras coisas prevendo o passado, que fizeram com que muitas coisas ficassem muito evidentes.

No momento que o Bolsonaro perde em 2022, a gente tem um cenário muito diferente. Tem pesquisadores que chegam a falar que não houve nenhuma grande informação falsa ou então que esse problema acabou e por aí vai, sendo que o candidato a deputado recordista de votos, o Nikolas Ferreira (PL-MG), faz uma campanha e tem uma carreira inteira em torno de questões como o banheiro unissex. Dificilmente você vai conversar com alguém do eleitorado evangélico mais antenado em redes sociais online que esteja totalmente alheio a essa ideia. Mas, no momento em que o candidato que investe nisso ou se beneficia para o cargo de presidente não sai vencedor das eleições, a gente volta a ignorar, por exemplo, como essas estratégias estão no legislativo, como essas estratégias foram utilizadas pelo candidato derrotado e como essas estratégias continuam sendo um mercado muito grande aqui no Brasil.

E aí, nesse ponto, dei um exemplo de uma informação falsa e de um candidato recordista de votos que parece estar sendo ignorado em várias análises, mas a gente também pode pensar no modo como deixamos de avaliar iniciativas de redes sociais online, na medida em que o candidato de extrema-direita acabou derrotado no pleito. Quando a gente fala disso, parece que é algo que aconteceu naturalmente, que as plataformas tomaram medidas para que as coisas fossem diferentes, mas na verdade a gente tem uma articulação da sociedade civil, pelo menos desde 2020, 2021, juntamente com órgãos como TSE e organizações que prezavam pela lisura do processo, tentando evitar que aqui no Brasil acontecesse uma tentativa de golpe.

Principalmente depois do Capitólio, isso se intensificou e se traduziu em pressão para que algumas regras fossem alteradas, ou, por exemplo, que as novas funcionalidades do WhatsApp viessem só depois da eleição. Quando isso acontece a gente não está só atrapalhando os entusiastas que gostariam de espalhar para muitos grupos: existem mercados que se preparam na expectativa dessas inovações, que tem uma série de estratégias que seriam colocadas em prática assim que essas inovações acontecem, então a gente interfere não só numa indústria, mas numa cadeia produtiva, na produção de conteúdo para entrar nessas redes, as pessoas unindo vários grupos para tentar colocar dentro disso. Interfere no quão caro é para você conseguir viralizar um conteúdo, uma vez que muitas, por mais que seja ilegal fazer campanha desse tipo, muitas das campanhas no WhatsApp são vendidas e as ferramentas cobram por envio.

Para além disso a gente pode olhar, enfim, para o YouTube e para outras plataformas, cada uma delas vai ter esforços e pontos em que não foram também sucedidos, mas eu acho que um ponto que talvez graças à mudança do WhatsApp não tem se concretizado, mas que começou a apontar um pouco a sua relevância é a dobradinha TikTok + WhatsApp e Kwai + WhatsApp.

Tanto Kwai quanto TikTok entregam conteúdo a uma quantidade muito grande de pessoas para além de seu círculo de seguidores inicial, eles entregam conteúdo para muito mais pessoas, por um lado, e por outro, eles facilitam o download para dentro do WhatsApp. No momento que esse vídeo entra no WhatsApp, ele sai de um cenário em que você tem um link para acessar ele, e entra num cenário em que cada pessoa acessando faz um download desse conteúdo para o próprio celular. Quando você manda isso para um grupo e as pessoas do grupo veem, isso multiplica a quantidade de cópias físicas desse conteúdo em celulares diferentes que podem a qualquer momento voltar online.

Se a gente lembrar de conteúdos compartilhados pelo próprio Bolsonaro com o selo do Kwai, por conteúdos posteriormente a 2022, ou conteúdos durante o período eleitoral, durante tentativa de golpe no 8 de janeiro, quantos deles estavam relacionados a Kwai ou TikTok utilizando as ferramentas que favorecem a edição de conteúdo e alcance por um lado e por outro circulando dentro do WhatsApp mesmo quando são excluídos dessas aplicações. O TikTok até agora parece ser mais responsivo e agir mais rapidamente do que o Kwai, mas a gente ainda precisa conferir como isso vai se dar. Essa parece ser uma inovação que a pressão da sociedade civil aliada à tomada de decisão de postergar um pouco as alterações no WhatsApp pode ter evitado.

Quem não estava tentando derrubar a República acompanhava tudo atônito pelas redes sociais por um facilitador: os próprios golpistas transmitiram, registraram e publicaram as depredações e crimes nas mesmas redes sociais usadas para organizar a tentativa de golpe de estado.

Se você acha que a organização do 8 de janeiro não usou de forma fundamental plataformas de redes sociais, eu tenho uma Belina a álcool, ano 93, para vender para você, pouquíssimo uso. Quase um ano depois entendemos que a postura da big tech no 8 de janeiro foi pior do que só permitir: elas lucraram, e não apenas em 8 de janeiro. Elas estavam lucrando com o golpismo desde sempre (como já mostramos nos episódios anteriores), mas especialmente após a proclamação do resultado pelo TSE. Desde a derrota nas urnas o bolsonarismo rodou por meses anúncios no Facebook e Instagram mentindo sobre fraudes nas eleições e convocando manifestações. A Agência Pública achou 65 anúncios irregulares vistos mais de 125 mil vezes em novembro de 2022. Em fevereiro de 2023, já depois da tentativa de golpe, o NetLab da UFRJ atualizou os dados: foram, pelo menos, 185 anúncios de viés inegavelmente golpista veiculados no Facebook e no Instagram.

Quando chegou o 8 de janeiro, o lucro veio de outras formas. No YouTube, golpistas lucraram com Super Chats durante em transmissões ao vivo, segundo a agência de checagem Aos Fatos3. Pior que isso foi o que uma Abin — infestada de bolsonaristas — concluiu: no dia da tentativa de golpe, canais de extrema-direita no YouTube chegaram a lucrar R$ 135 mil com transmissões golpistas. Abre aspas para a reportagem da Folha de S.Paulo:

O vereador de Planaltina de Goiás Genival Fagundes (PL) também transmitiu ao vivo e in loco via YouTube a invasão, de acordo com a agência. O canal foi desativado por ele, mas, segundo estimativas da Abin, faturou no mínimo R$ 135 mil.‘A transmissão rendeu dividendos pagos pela plataforma ao canal de Genival Fagundes, Política sem Curva. Enquanto transmitia, Fagundes narrava atos e exaltava os invasores, defendia a ação e orientava os participantes’, descreve o relatório. Já Elaine Helena Roque retransmitiu e comentou ao vivo em seu canal no YouTube os ataques de 8 de janeiro. O vídeo —já apagado— teve mais de 42 mil visualizações e recebeu dividendos pagos pelo YouTube, segundo a Abin.

Os dados foram repassados pela Abin à CPI do 8 de janeiro. Não está claro como a Abin chegou aos números — a agência não detalhou.

O YouTube não foi a única fonte de renda dos golpistas. O programa Google AdSense foi fundamental para que sites de extrema-direita lucrassem enquanto mentiam sobre fraude eleitoral e incentivavam atos golpistas após a derrota de Bolsonaro nas urnas. Abre aspas de novo para a agência Aos Fatos:

Desde 12 de novembro (de 2022), links que levam aos sites Patriota News e Diário Nordeste foram inseridos em páginas que utilizam o Google AdSense como forma de monetização. Ambos possuem identidade visual parecida, publicam conteúdos idênticos e foram criados em setembro deste ano. Além de serem anunciantes no Google Ads, os sites também utilizam o Google AdSense para ganhar dinheiro, exibindo anúncios em suas páginas, além de pedirem doações via Pix.

Os casos do Patriota News e do Diário Nordeste dizem respeito diretamente ao golpismo pós-eleições, mas são fichinha perto do alcance e da receita que outros sites pioneiros na propagação de ataques baseados em mentiras contra o sistema eleitoral e o Estado Democrático de Direito. Abre aspas para, de novo, o Aos Fatos:

O Jornal da Cidade Online é investigado pelo STF no Inquérito 4.828, que apura os atos antidemocráticos. Em relatório sobre o caso, o ministro Alexandre de Moraes afirmou que indícios e provas apontavam para a existência de “uma verdadeira organização criminosa, de forte atuação digital e com núcleos de produção, publicação, financiamento e político”. Integrante dessa rede, a publicação teve “aumento expressivo” de faturamento com publicidade por meio do Google AdSense logo após as eleições de 2018, segundo a investigação. Segundo relatório final da CPI da Covid-19, realizada no Senado em 2021, o Jornal da Cidade Online integra um “grupo formado por organizações que na aparência funcionam como empresas jornalísticas”, porém sem “o devido compromisso com os princípios éticos da profissão, tais como a divulgação da informação precisa e correta”.

Como bem lembra a fundadora do Aos Fatos, Tai Nalon, assediada judicialmente pelo Jornal da Cidade Online, o inquérito 4.828 considera que o site, junto a outros como o Terça Livre, fazem parte de uma “verdadeira organização criminosa”, cujos donos receberam “aumento significativo de recursos por meio da ferramenta Google AdSense entre 2018 e 2019”. Segundo a Receita Federal, a receita do site pulou de R$ 346 mil em 2018 para mais de R$ 1 milhão em 2019, alimentado tanto pelo AdSense como pela SECOM bolsonarista.

Outro site de extrema-direita que usava seu grande alcance para pôr em xeque e atacar o sistema eleitoral brasileiro foi o Terra Brasil Notícias. No artigo “Financiando a desinformação: Análise dos sistemas de publicidade durante a eleição de 2022”, apresentado durante a 10º Compolítica, Marcelo Alves, pesquisador e professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-RIO cujo depoimento você ouviu no segundo episódio desta trilogia, coletou dados e analisou mais de 95 mil peças publicitárias do Terra Brasil Notícias, um dos maiores sites do tipo. Deste corpus, “44% (…) vieram do Google Adsense”.

Como funciona o modelo de negócio do Google? Sites ganham dinheiro com seus conteúdos veiculando anúncios escolhidos pelo Google. Mas a receita publicitária não fica inteira com os sites onde os anúncios rodam. O Google pega uma parte da verba por esse papel de intermediação. Não se sabe ao certo a divisão, mas estima-se que a partilha seja de cerca de 40%. Sejamos conservadores: definamos em 40%. Só nos últimos parágrafos a gente já falou do Google ganhando dinheiro com anúncios (sites e vídeos) e Super Chats golpistas e a Meta ganhando dinheiro com anúncios golpistas. É bom esclarecer que, da receita total do Google em 2022, só 11% veio do Google Network, onde o AdSense opera. Ou seja: está longe de ser fundamental para a solidez dos resultados trimestrais.

Fazendo uma conta de padeiro extremamente conservadora a partir dos dados já revelados a conta-gotas, pode-se inferir que, principalmente, o Google, mas também as outras plataformas já faturaram milhões de reais com conteúdo golpista e negacionista. Vamos lembrar que entre 2018 e 2020, o YouTube Brasil já tinha pago R$ 6,8 milhões para 12 canais bolsonaristas que atacavam repetidamente STF e Congresso durante a pandemia, segundo dados apurados pela Polícia Federal no inquérito dos atos antidemocráticos. Em outras palavras: o Google, a Meta e outras big techs no Brasil estão faturando com gente que defende golpe de estado e abolição do Estado Democrático de Direito no Brasil. O modelo de negócio aliado à omissão de Google, Meta e afins fornece “incentivos econômicos e modelos de financiamento das indústrias de desinformação”, como diz Silva.

“Ah, Guilherme, mas esse dinheiro para o Google Brasil é troco de pinga.” Possivelmente é verdade. Lá em 2016, a receita anual do Google no Brasil já tinha passado do US$ 1 bilhão. Isso, vamos lembrar, antes da explosão comercial do YouTube e da pandemia. O número hoje é certamente muito maior. O Google Brasil deve gastar mais com o Nespresso dos seus diretores mensalmente do que o dinheiro citado no inquérito. O ponto é: e daí? A única coisa que conteúdo golpista deveria render é cadeia. Se o Google ganhasse um real por conteúdo que golpista já seria muito. A gente só vai saber o quanto a big tech embolsou de dinheiro golpista quando eles abrirem os dados. Se depender da vontade deles, pode separar uma poltrona bem confortável enquanto espera esse dia chegar.

Além de lucrar, a big tech também terceirizou a moderação para um modelo conjunto: sempre que era questionada pela imprensa sobre conteúdo irregular na plataforma, a big tech pedia que jornalistas e pesquisadores mandassem os links para que eles fossem removidos. As plataformas usavam profissionais externos, como jornalistas e pesquisadores, para fazer um trabalho que, na teoria, deveria ser seu: monitorar a própria plataforma para evitar a publicação, circulação e viralização de conteúdos que quebrassem suas próprias regras ou, pior, a lei4. Essa “simbiose de moderação”, logo, funcionava apenas quando a merda já tinha batido no ventilador, nunca antes.

As plataformas só deram atenção plena quando a tal Festa da Selma já tinha se traduzido no pior ataque à República brasileira desde a Ditadura Militar iniciada em 1964. Sob seus narizes e usando seus serviços, milhares de golpistas se articularam e publicaram vídeos e fotos não apenas quebrando a lei, mas tentando destruir a democracia. Seis meses depois, “o Conselho de Supervisão da Meta (Oversight Board) afirmou que a plataforma errou ao não remover vídeos que incitavam a invasão a Brasília e descumpriu suas próprias regras de proibição de incitação à violência”, segundo a Folha. Até aí, Inês é morta, está putrefata e emitindo um cheiro insuportável.

No fim do 8 de janeiro, quando as intenções golpistas tinham saído de trás da metáfora de aniversário, se assumido explicitamente violentas e falhado mesmo com toda ajuda de agrupamentos da Polícia Militar do Distrito Federal, começou o esforço coletivo de calcular no colo de quem a bomba ia explodir e minimizar chances de explodir no próprio colo. As plataformas adotaram um protocolo parecido com as interrupções golpistas nas estradas logo após a proclamação da vitória de Lula, tirando do ar um grande volume de vídeos e fotos golpistas. Quantas? Só as plataformas sabem; esses microdados nunca foram divulgados. Neste caso específico, as plataformas tiveram a ajuda dos próprios golpistas: assim que a tentativa falhou e a sombra da responsabilização começou a pairar, muitos tiraram do ar por conta própria os conteúdos que publicaram para tentar escapar das punições5.

Parte de uma planilha com vídeos excluídos de youtubers extremistas.
Vídeos excluídos do YouTube. Imagem: Guilherme Felitti/Manual do Usuário.

Enquanto a tentativa de golpe se desenrolava, eu baixei da API oficial do YouTube dados sobre vídeos geolocalizados para a Praça dos Três Poderes publicados naquela tarde e publiquei o print da lista no Twitter. Tente acessá-los: muitos saíram do ar antes que o YouTube fizesse qualquer coisa. A exclusão de conteúdo sem o devido REPORT detalhado serve tanto aos golpistas como ao YouTube — ambos apagam rastros que facilitariam suas responsabilizações e dificultam a vida da sociedade civil e das forças de segurança.

Neste cálculo feito após o fracasso da tentativa de golpe e o rastro de destruição deixado, a big tech entendeu que, com os golpistas presos e eventualmente os ainda foragidos, uma hora a atenção da sociedade se voltaria a si. O entendimento foi correto. É aí, no fim da tarde de 8 de janeiro, que termina a segunda fase da big tech no processo eleitoral brasileiro em 2022 e começa a terceira fase, onde estamos agora. Após tentar forçar uma naturalidade artificial frente ao crescente golpismo nas estradas e nas portas dos quartéis, a tentativa de golpe de estado foi não apenas a gota, mas o balde d’água que fez o copo transbordar. Mesmo com o mise-en-scène, campanhas de PR e sorrisinhos falsos, não tinha mais como a big tech sustentar que tinha se esforçado o suficiente para evitar problemas do tipo. Começa aí uma campanha explícita para desarmar a bomba em contagem regressiva nos seus colos. É um esforço majoritariamente feito nos bastidores com um objetivo central: diminuir ou, melhor ainda, evitar punições, responsabilização e regulação.

A amostra é anedótica, mas vale o registro: na noite de 8 de janeiro, dois diretores do Google na América Latina vieram atrás de mim. Um, o de comunicação, me seguiu no Twitter e outro, de Trust & Safety, viu meu perfil no LinkedIn. Conversando com pesquisadores da área que tinham vocalizado críticas às posturas das plataformas no ciclo eleitoral, descobri que não fui o único.

Prints dos perfis de funcionários do Google no Twitter e LinkedIn.
Prints: Guilherme Felitti/Manual do Usuário.

Parte inegável desta terceira fase é se aproximar do Governo Lula para, de diferentes maneiras, tentar atrair certa simpatia. Essa ofensiva de charme não significa necessariamente chegar diretamente aos principais nomes, como o próprio presidente Lula, mas usar pessoas próximas às cabeças para influenciar. Há uma figura central aqui: a primeira-dama Rosângela Lula da Silva, a Janja. Em fevereiro e abril, a primeira-dama esteve em pelo menos dois encontros com representantes femininas da big tech para falar sobre serviços voltados às mulheres. Em fevereiro foi com uma diretora do Google. Janja publicou o encontro em seu feed nas redes sociais falando da reunião “com muitas ideias”. Em abril foi a vez de encontrar uma diretora da Meta para falar sobre um canal de atendimento pelo WhatsApp contra violência contra mulher. A executiva publicou o encontro, com direito a foto sorridente, no seu feed.

Em um momento de responsabilização de empresas diretamente responsáveis por uma tentativa de golpe que, convém manter alguma distância. Em novembro, um ano depois da vitória de Lula nas urnas, a primeira-dama disse em entrevista ao jornal O Globo que, em encontros com as plataformas, fez cobranças sobre as mentiras veiculadas a seu respeito aparecendo no topo dos resultados. Meno male. Justiça seja feita, Janja não foi a única — praticamente todos os ministérios e, especificamente, ministros e ministras — receberam contatos para encontros com executivos de big tech.

Um passo para trás para explicar como opera uma empresa enorme, não apenas da área de tecnologia: você tem uma divisão, normalmente chamada de “public policy”, com advogados e lobistas com a função primordial de se aproximar do governo (seja ele federal, estadual ou municipal). É uma operação fundamental para buscar contratos ou influenciar em decisões que impactam a operação da empresa. O Tecnocracia #9, publicado em março de 2019, fala exatamente disso usando como exemplo a Uber:

A Uber é um exemplo de como lobby pode alterar as regras para permitir uma operação que precisa encontrar seu espaço na base da cotovelada. Com a operação estabelecida, a máquina de lobby já montada ganha uma nova missão: evitar legislações que possam prejudicar o sucesso financeiro da empresa. No primeiro estágio, a startup se queixa que interesses escusos a impedem de entrar no setor e conclama seus fãs a agirem.

Quando já está garantida no setor, a empresa usa a divisão de public policy para minimizar ameaças, incluindo legislações que dificultem sua operação, e a divisão de parcerias para oferecer serviços gratuitos como uma forma de demonstrar boa vontade. É o espelhinho do colonizador para o índio. Você, cara pálida, já sabe nesta metáfora quem é a big tech.

A big tech já estava em contato com o governo Lula antes da posse, mas é inegável que, após o 8 de janeiro, algo mudou, principalmente pelo medo do que o governo poderia fazer com elas, segundo gente que acompanhou a relação. Nas reuniões, as empresas tentaram, mas tiveram dificuldades em manter o mesmo discurso de sempre. Com a violência explícita, ficou mais difícil taxar conteúdos de violência política, por exemplo, como “subjetivos”, algo que vinha sendo feito desde o início do processo eleitoral.

A boa vontade tinha uma exceção: o Twitter. O governo brasileiro marcou uma reunião com a plataforma e, de última hora, soube que Elon Musk7 participaria. Membros do governo brasileiro disseram a Musk que o perigo não tinha passado e ainda pairava um risco de golpe. Chegaram até a ler as regras do próprio Twitter mostrando como tweets ainda no ar a violavam explicitamente. Abre aspas para a Folha de S.Paulo, que detalhou a reunião:

Musk disse estar feliz porque a situação no país já estava sob controle, afirmou que a democracia brasileira era sólida e o Brasil era muito importante para a empresa. O lado brasileiro ressaltou que a tentativa de golpe tinha sido muito grave e ainda havia preocupações com o que vinha pela frente. Disse que o Twitter não estava aplicando suas próprias regras. Ao que Musk teria ressaltado ‘a importância de defender a liberdade de expressão’ e de examinar o ‘contexto’ das publicações. Ele disse que a empresa continuaria a seguir a lei, ainda que houvesse excessos nas decisões judiciais de um determinado juiz. Mesmo assim, e apesar das promessas de Musk, nada foi feito. O tuíte — e o vídeo — estão disponíveis até hoje no Twitter (rebatizado de X), sete meses após uma multidão invadir o Congresso, o STF e o Planalto, vandalizar as instalações e causar ao menos R$ 20 milhões em prejuízo.

A situação que já era tensa piorou no dia 5 de abril, quando um homem entrou armado em uma creche em Blumenau (SC) armado e matou quatro crianças entre 5 e 7 anos com uma machadinha e um canivete. Nos dias seguintes, conteúdo enaltecendo o assassino e sua ação, incluindo imagens, foram publicados nas plataformas. Pesquisadores(as) que estudam assassinatos em massa do tipo já chegaram ao consenso de que informar o nome e dar detalhes é uma forma de “endeusar” o assassino e inspirar outras pessoas a fazerem o mesmo. Menos de uma semana depois da matança, representantes do Governo Federal se reuniram com representantes das plataformas. O que o Twitter respondeu frente aos pedidos para remoção de conteúdos enaltecendo quem matou crianças? Abre aspas para a reportagem da Folha de S.Paulo:

O Twitter disse que divulgar fotos e nomes de autores de ataques a escolas não viola as regras da plataforma. Assim, a empresa entende que não precisa fazer nada porque o termo de uso permite a divulgação de material do tipo. Integrantes da pasta e representantes de outras redes sociais ficaram constrangidos e incomodados com a situação. Nesse momento, segundo relatos, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino (PSB), subiu o tom e disse que os termos de uso não se sobrepõem à Constituição e às leis e não são maiores que a vida de crianças e adolescentes. O ministro disse, ainda, que não há termo de uso para quem quer se comportar de maneira irresponsável e afirmou que a liberdade de expressão não autoriza a veiculação de imagens agressivas com o objetivo de difundir pânico nas redes sociais. Em seguida, a reunião foi encerrada. A reportagem tentou contato com o Twitter, mas recebeu apenas um email com um emoji de cocô.

Talvez você estivesse focado(a) numa sujeira mais grossa num prato ou a esteira apitou agora, então vamos repetir para que não existam dúvidas: depois de um massacre escolar que matou quatro crianças no Brasil, o Twitter se recusou a tirar do ar conteúdos que enalteciam o assassino porque, segundo eles, os conteúdos não quebravam as regras da plataforma. E tem gente que ainda endeusa este Pinóquio feito de estrume, não madeira, chamado Elon Musk.

Joana Varon

Olá! Eu sou a Joana Varon, fundadora e diretora executiva da Coding Rights, organização que trabalha com tecnologia, analisando as relações de poder por trás da sua utilização e desenvolvimento.

Há anos a gente acompanha violência de gênero e tecnologias e em eleições, em períodos eleitorais. A gente tem observado e monitorado principalmente temas de violência política de gênero. Nas eleições de 2022, preocupadas também com a integridade do processo eleitoral, manutenção do Estado Democrático de Direito, em balanço com a liberdade de expressão, juntamente com outras organizações parceiras, da Coalizão de Direitos na Rede, da Sala de Articulação contra a Desinformação (SADE), fizemos parte de um grupo que monitora a estuda, analisa o papel, entre outras coisas, o papel das plataformas dessas grandes empresas de tecnologia para fomentar um ambiente de violência política de gênero, de ódio, de desinformação.

Estou falando aqui mais especificamente da Meta, dona do Facebook, do Instagram, e do WhatsApp; do Google, que tem o buscador e o YouTube; o Twitter, no caso X; Telegram também. Estou falando principalmente de redes sociais, e o que acontece hoje é que o modelo de negócio das redes sociais é baseado, como todo mundo sabe, no tempo de tela que a gente fica nessa rede, vendo publicidade, marcando likes, compartilhando ou produzindo dados também para essas redes. E conteúdo de ódio, conteúdo desinformativo é muito mais polêmico, então tem mais engajamento. Então a gente sabe, já provado, que essas redes ganham mais com esse tipo de conteúdo.

Isso já é problemático, porque o ambiente fica tóxico. No contexto de eleições, é mais problemático ainda, porque a gente está debatendo propostas de país. O que a gente observou foi que, indiferentes ao contexto eleitoral, contexto da democracia brasileira, essas plataformas seguiram lucrando absurdamente e em desrespeito também à nossa legislação nacional, mais especificamente a lei eleitoral. Mas não só, também sem aplicar os próprios termos de uso que elas mesmos escreveram. Então a gente observou que conteúdo repetidamente denunciado como desinformação eleitoral continuou online, continuou podendo ser impulsionado. Observamos que canais também repetidamente denunciados, porque é um conteúdo de ódio, conteúdo que afeta a integridade do processo eleitoral, afeta a manutenção do Estado Democrático de Direito, esses canais continuaram online, não só online, como também sendo monetizados, sendo recomendados, sendo priorizados nas recomendações, inclusive de mecanismos de busca. Tanto as plataformas quanto as redes que estavam produzindo esses conteúdos contra o processo eleitoral, com desinformação, conteúdos atentando o Estado Democrático de Direito, estavam sendo monetizados, ganhando dinheiro junto com as plataformas.

Fora a questão dos anúncios, que continuaram sendo vinculados, anúncios eleitorais em plataformas geridas por Google e Meta, sem passar pelo devido processo de autorização requerido pelo Tribunal Superior Eleitoral. Então isso tudo deu no que deu, né? Na depredação dos prédios que simbolizam os Três Poderes de uma democracia, e para uma coisa escalonar até aí, a gente observou que mesmo depois do resultado das eleições, que esse resultado estava validado por órgãos internacionais, pelo nosso Tribunal Superior Eleitoral, as postagens contra a integridade do sistema, contra o resultado das eleições, no dia e logo após o pleito, chamando para atos violentos, se propagavam por todas essas redes, sem qualquer moderação de conteúdo nos termos de serviço das redes, de acordo com a nossa lei.

Mesmo as plataformas, por já terem vivido isso na invasão do Capitólio, mesmo a gente já tendo conversado com representantes dessas plataformas de que isso poderia acontecer no Brasil, porque a extrema-direita segue aí uma cartilha, nada foi feito como precaução e a nossa democracia ficou aí a Deus dará. As deusas dessa vez cuidaram, mas não é assim que se gera um negócio e não pode ser assim que caminha uma democracia.

A postura injustificável e revoltante do Twitter se somou à responsabilização pelo 8 de janeiro e criou uma onda forte demais para ser rebatida só com press releases e parcerias pela big tech. Legislar envolve também a percepção pública sobre os envolvidos. E a relutância do Twitter manchou a reputação de “grandes empregadores” que a big tech relembra para a sociedade sempre que o tema responsabilização surgiu — pode ver, sempre que o papo surge, o Google, a Meta e a Uber dizem que empregam milhares de brasileiros, distribuem milhões de reais, pagam impostos e afins. Como se gerar empregos te desse cartão verde para operar sem regras — a gente já viu isso com as construtoras, mas isso é papo para outro dia.

Proteger quem mata criança cruzou tantas linhas que chamou a atenção da sociedade e mostrou de forma evidente a necessidade de regulamentar e responsabilizar as plataformas.

Para o próximo passo, vamos falar um pouco sobre o processo legislativo: a cada legislatura, milhares de projetos de leis são apresentados na Câmara e no Senado. Destes, poucos sobrevivem até virarem lei. O padrão é que os projetos sejam apresentados e morram de inanição em gavetas. Em algumas raras vezes, eles nascem e ficam dormentes até que surge o momento político ideal para que ressuscitem e fiquem sob as luzes da ribalta.

Foi exatamente este o caso do projeto 2630/2020, apresentado pelo senador Alessandro Vieira (CIDADANIA-SE) em 13 de maio de 2020. O projeto, que pretendia estabelecer “normas relativas à transparência de redes sociais e de serviços de mensagens privadas, sobretudo no tocante à responsabilidade dos provedores pelo combate à desinformação e pelo aumento da transparência na internet”, foi aprovado no plenário do Senado em julho de 2020 e, como parte da tramitação, remetido à Câmara dos Deputados. Na Câmara, o PL entrou nas filas das comissões e hibernou durante pouco menos de três anos. Duas semanas depois da postura petulante do Twitter, a Câmara dos Deputados aprovou a urgência do PL. O 2630/2020 voltou à vida com mais holofotes do que jamais teve, não apenas pela percepção de irresponsabilidade das plataformas, mas também pela articulação do Governo Lula na Câmara.

Aqui tem muita coisa que a gente pode falar do 2630 e falar sobre projeto em tramitação é tentar acertar um alvo que ziguezagueia, sempre em movimento. O resumo da minha percepção é que tem alguns pontos dos quais eu discordo bastante — essa ideia de querer pendurar tudo no PL para aproveitar a aprovação, como pagamento para artistas, é um erro não pelo pagamento, mas por deformar a ideia principal do projeto8. De maneira geral, porém, o projeto introduz uma série de responsabilidades e punições que, hoje, não existem para plataformas digitais no Brasil.

Um dos motes iniciais do Tecnocracia é que as empresas de tecnologia se tornaram tão grandes que, querendo ou não, usando ou não, as ações delas impactam sua vida. Frente à possibilidade de uma lei que impõe limites, define responsabilidades e prevê punições, não havia dúvidas de que a big tech jogaria todo seu peso contra a lei.

A resposta de Google, Facebook, Telegram e Twitter contra o PL 2630 envolve abuso de mercado, milhões de reais pagos a advogados, lobistas e assessores, divulgação de mentiras descaradas e FUD 9 e aliança com o mesmo grupo que atacou o sistema eleitoral e a democracia brasileiros.

Vamos analisar a estratégia separada por dois públicos-alvo: a sociedade para retomar uma percepção de bem coletivo e os deputados que votariam na aprovação.

Comecemos pelo lobby na Câmara. Abre aspas para apuração dos repórteres Daniel Weterman e Julia Affonso no Estadão:

O Google e a Meta — controladora do Facebook, Whatsapp e Instagram – lideraram uma operação de pressão e lobby para derrubar o Projeto de Lei 2630, o PL das Fake News, da pauta do Congresso brasileiro. Ao longo de 14 dias, as empresas e outras big techs atuaram fortemente para deputados se posicionarem contra a proposta, com ameaças de retirar conteúdo das redes sociais e disseminação de uma campanha de ataques às contas deles na internet. Um monitoramento do Estadão revelou que a pressão das empresas fez com que pelo menos 33 deputados mudassem de posicionamento entre a aprovação do requerimento de urgência, dia 19 de abril, e a retirada de pauta, em 2 de maio. Um site, hospedado nos Estados Unidos, foi aberto para mostrar o voto de cada um. Os internautas foram instigados a mandar mensagens para aqueles que se diziam a favor ou ainda não tinham se colocado claramente contra. (…) As empresas estrangeiras montaram uma operação online e offline. Nos gabinetes, lobistas atuaram para convencer deputados a recuar. Nas redes, as plataformas fizeram campanhas abertas contra o projeto e deram voz a internautas para pressionar deputados que se posicionaram a favor ou estavam indecisos.

Em conversas com integrantes da direita e da bancada evangélica no Congresso, lobistas do Google e de outras plataformas digitais ameaçaram apagar conteúdos dos parlamentares se o PL das Fake News fosse aprovado. A lógica deles era a seguinte: a lei forçaria as empresas a classificarem o que era fake news ou não e apagar conteúdos considerados sensíveis. É a chamada “moderação de conteúdo”, tão temida por parlamentares que vivem das redes sociais para falar com o público e ganhar dinheiro com monetização. Não por acaso, a bancada evangélica passou a difundir mensagens sobre o risco de censura a versículos da Bíblia. Um dos disseminadores desse alerta foi o então deputado Deltan Dallagnol. Na época, o relator do projeto, Orlando Silva (PCdoB-SP), classificou essas mensagens como “fake news”.

Esse trecho da reportagem do Estadão mostra outro lado da operação de lobby do Google: além das ameaças, organizações ligadas à big tech alimentaram deputados da oposição com interpretações delirantes sobre o que aconteceria caso a lei fosse aprovada. A principal linha de ataque aqui foi o FUD religioso, já explorado exaustivamente pelo bolsonarismo durante a campanha eleitoral. Abre aspas para o repórter Edoardo Ghirotto na coluna de Guilherme Amado no Metrópoles:

Deputados evangélicos disseram à coluna que receberam de lobistas da Meta, empresa que controla o Facebook, o Instagram e o WhatsApp, um documento que levantava a possibilidade de o PL das Fake News censurar postagens de cunho religioso. Os parlamentares entenderam que o documento havia sido produzido pela própria Meta. A companhia negou a autoria e também ter repassado o documento. Após a publicação da reportagem, uma associação de que o Facebook e outras plataformas fazem parte, a Câmara Brasileira de Economia Digital, assumiu a autoria do texto. O documento é apócrifo, ou seja, não tem timbre ou nada que identifique que tenha sido produzido pela Câmara Brasileira da Economia Digital (camara-e.net). Também fazem parte da entidade o Google, o TikTok, o Kwai e o Twitter, entre outros.

O documento destacava seis versículos da Bíblia que, segundo a interpretação delirante, seriam banidos da internet caso a lei avançasse.

Quem repetiu o “argumento” foi a Frente Parlamentar Mista de Economia e Cidadania Digital. O nome é pomposo, mas pode chamar de Bancada da big tech, parlamentares alinhados aos interesses das grandes plataformas. A gente já falou sobre isso no Tecnocracia #59 citando uma reportagem fundamental da jornalista Tatiana Dias no site The Intercept, em 2021: a big tech, liderada por Google e iFood, estava há anos se mobilizando e se aproximando de parlamentares no Congresso para formar uma “tropa de choque” que defendesse seus interesses na casa. Foi dali que surgiu o infame Prêmio Turing dado a Arthur Lira (PP-AL) em outubro de 2021 — vou repetir a piada: já não basta o que fizeram com o Turing em vida, ainda tem isso em morte. O investimento está se pagando.

Lembra da mamadeira de piroca em 2018? A mamadeira de piroca do 2630/2020 foi a “censura de religião” — deputados como o agora cassado Deltan Dallagnol e Bia Kicis repetiram versões da mentira forjada pela big tech. Aqui, a big tech se alinhou ao mesmo grupo político que ajudou a atacar o sistema eleitoral brasileiro. Não chega a impressionar, mas é sempre bom notar como os comunicados da big tech contra o 2630/2020 quase sempre repetem teorias da extrema-direita equivalendo regulação à censura e/ou fim da liberdade de expressão.

Para chegar à sociedade, a big tech usou a si mesma: o Telegram disparou uma mensagem agressiva para todos os usuários da plataforma e o Google colocou um link na sua página inicial para um artigo em que, entre mentiras, defendia que a lei tornaria a internet pior. A página inicial do Google é um espaço sacrossanto, raríssimas vezes ocupado por qualquer outra coisa que não a caixa de busca — quando o Steve Jobs morreu, por exemplo, lá estava uma curta homenagem, o que mostra o tamanho da ação do buscador no Brasil.

“Mas, Guilherme, eles precisam participar desse debate. Se fosse uma lanchonete poderia, então porque não pode o Google?” Todos os impactados devem participar, sim, mas, bonito e bonita, a lanchonete não controla sem qualquer transparência o meio no qual bilhões de pessoas se comunicam diariamente. Quem garante que a big tech não vai colocar o dedinho na balança para beneficiar a si mesma, seja com conteúdo próprio ou externo que repita seus pontos? Pesquisa do NetLab descobriu que o Google estaria “privilegiando links de conteúdo de oposição ao PL nos resultados das buscas sobre o projeto de lei, além de anúncios do próprio Google criticando a nova legislação”, segundo a Folha. O Google se defendeu falando que não tinha feito nada demais, que o sistema era assim, aquele blablabla de sempre. Mas como tirar a dúvida? Não tem como. É palavra contra palavra e a gente já viu que big tech não mente nunca 10. O argumento da lanchonete implode por uma questão de escala: ao usarem suas próprias plataformas para influenciar o debate, a big tech corroborou a necessidade de existirem freios e contrapesos à sua atuação.

As mensagens de Google e Telegram em suas próprias plataformas motivaram um inquérito na Polícia Federal e o ministro Alexandre de Moraes mandou suspender o Telegram no Brasil de novo, caso o aplicativo não deletasse a mensagem enviada à base. A Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) também notificou o Google por publicidade abusiva. O diretor de relações governamentais e políticas públicas do Google, Marcelo Lacerda, e o presidente do Google na América Latina, Fábio Coelho, “foram ouvidos no último dia 15 pela equipe da PF encarregada dos inquéritos que tramitam em tribunais superiores”. Dados do próprio Google mostram que a empresa gastou R$ 2 milhões na investida.

Em junho, outro indício explícito de desigualdade de relações: o Google “só” contratou Michel Temer para atuar nas negociações sobre regulação. Não há maior indício da desigualdade de relações do que contratar um ex-presidente sem um histórico de atuação em assuntos cibernéticos. O plano é claramente engrossar o lobby. Temer disse que atuava desde maio com “mediação” junto a parlamentares. Ainda em junho, a Câmara marcou uma audiência e convidou a big tech a responder questionamentos de parlamentares. A audiência foi desmarcada depois que Telegram, Google e Twitter ignoraram o convite, Meta recusou e Spotify impôs condições. Tal qual Bolsonaro, a big tech só responde no seu cercadinho.

A essa altura, a votação em urgência do PL 2630/2020 já tinha sido adiada por Lira entender que a matéria não passaria no plenário. O esforço nos bastidores da big tech em mudar votos com ameaças e mentiras funcionou. Chegamos ao presente. A fase em que estamos é essa: a big tech sem qualquer escrúpulo de mostrar que a guerra é aberta e o objetivo é fugir de qualquer regulamentação e responsabilização. Em janeiro de 2022, com a eleição esquentando, eu publiquei o Tecnocracia #59 com o título “No Brasil, big tech quer ganhar dinheiro e fugir das responsabilidades”. Infelizmente, minha bola de cristal estava bem polida.

Clarissa Tavares

Oi! Meu nome é Clarice Tavares, sou coordenadora da área de desigualdade e identidade do InternetLab. O InternetLab é um centro de pesquisa em Direito e Tecnologia sediado em São Paulo. A gente vem pensando o fenômeno da violência política com o enfoque especial na dinâmica de gênero e raça desde 2022 no pleito municipal. Fizemos essa análise sobre violência política de gênero e de raça, principalmente com o Monitora, que é uma parceria do Internet Lab com a Revista Azmina, que é um observatório de violência política de gênero em que a gente faz um monitoramento de diferentes perfis de candidaturas de mulheres de diversos partidos diferentes, de esquerda a direita, em todo o Brasil, para entender como a internet impacta essas candidaturas, como essas candidaturas se protegem ou não da violência política nas redes sociais, como a violência política também, em alguma medida, sequestra o próprio debate que essas candidatas tentam conduzir online.

Em 2020, a gente conseguiu notar que existe uma desproporção em relação ao número de ataques que candidatas mulheres recebem em comparação a candidatos homens, por exemplo. Existe também uma diferença muito significativa no conteúdo desses ataques.
De um lado, as mulheres são atacadas principalmente por elas serem quem são. Então existe um ataque muito grande relacionado a seu corpo, a uma suposta capacidade intelectual, uma capacidade política das mulheres. Existe também um aspecto muito grande de uma gordofobia, em que essas mulheres são atacadas por serem quem elas são, pelos corpos que têm, e muitas vezes a atuação política em si não está em jogo. Por exemplo, em 2020 tivemos uma média de 40 tweets ofensivos por dia, direcionado às candidatas que monitoramos. Nas eleições gerais de 2022, a gente fez mais uma edição do Monitora, fazendo esse acompanhamento da violência política no Twitter, no Instagram, no YouTube e no Facebook de diversas candidatas.

Percebemos um fenômeno muito parecido de violência. Existe uma continuidade de violência entre as últimas eleições. Mesmo que o tema da violência política tenha ganhado um destaque, tenha tido uma lei aprovada entre esse período de 2020 a 2022, a gente percebe que a violência política continua sendo uma questão, que as plataformas ainda não têm agido de formas suficientemente eficaz no enfrentamento dessa violência política.

Isso tem um impacto muito direto na participação política dessas mulheres, que se vêem tendo que ter uma equipe muito específica para lidar apenas com a violência que elas recebem online. Tem que ter uma equipe jurídica, e muitas vezes elas não necessariamente recebem todo o apoio das plataformas desse enfrentamento. Acho que esse cenário de violência política de gênero também mostra um um desafio democrático para uma participação mais efetiva de mulheres na política, em que existe uma atuação mais forte das plataformas. Acho que de 2020 para 2022, por exemplo, a gente percebe que o tema da violência política passa a ser mais central no debate das plataformas, com ações mais específicas, mas ainda assim é um cenário insuficiente, dado a quantidade de violência que está espalhada pela internet, e dado também a massificação dessa violência.

Acho que a massificação da violência política durante o período eleitoral é um desafio que as plataformas ainda não sabem como endereçar. Acho que não são só as plataformas, acho que até a sociedade civil e o poder público ainda tem esse problema a lidar, como pensar com esse avanço de uma violência política que também se utiliza de ferramentas digitais e de ferramentas offline para inibir e atacar a candidatura de mulheres.

Três episódios, quase três horas de conteúdo. Vamos amarrar essa bagaça. Eu quero me focar em dois pontos. O primeiro é sobre o futuro.

O futuro não é otimista

As decisões que a big tech tomou em 2023 para os EUA pintam um cenário que não indica melhora. De todos os lados vê-se um esforço para desmontar estruturas de combate à desinformação — eleitoral, inclusive — e diminuir a transparência com dados abertos. Sob o esterco-humano, o Twitter desmontou o grupo de moderação e public safety, recuperou contas banidas por infração das regras e virou um paraíso de golpistas, antivaxx, nazistas e todo tipo de crime, segundo estudo publicado em fevereiro de 2023 pelos grupos Combat Antisemitism Movement (CAM) e Network Contagion Research Institute (NCRI). Em junho, “o YouTube disse que não vai mais derrubar conteúdos que alegarem fraude na eleição presidencial de 2020 nos EUA, revertendo sua política de integridade eleitoral” para não “suprimir discurso político”, segundo o Núcleo. Também em junho, o Facebook anunciou o fim da política para excluir conteúdos desinformativos sobre covid-19, segundo a Agência Lupa. Abre aspas para reportagem do New York Times em fevereiro de 2023:

Mês passado, o YouTube sem alarde reduziu seu pequeno time de experts em policy responsável por lidar com desinformação, segundo 3 pessoas por dentro da decisão. Os cortes, parte da redução de 12 mil empregados pela holding que administra o Google, a Alphabet, deixou apenas uma pessoa responsável pelas políticas de desinformação no mundo todo, segundo uma fonte.

Depois de criar regras mais severas nos últimos anos para lidar com ondas de desinformação sobre a pandemia de covid-19, a guerra da Rússia contra a Ucrânia e a integridade de eleições ao redor do mundo, há uma tendência da big tech de reverter tudo isso, segundo o jornal. “Frente a obstáculos financeiros e pressões políticas e legais, as gigantes de mídias sociais deram sinais que combater informações falsas online não é mais uma alta prioridade, suscitando medo entre experts que acompanham a questão de que a confiança online será ainda mais erodida.” Se nos Estados Unidos, que é o maior mercado no mundo todo e, logo, é a prioridade, a big tech está largando mão de políticas e métodos de moderação, imagina em mercados coadjuvantes, como o brasileiro. Ao mesmo tempo, o Legislativo vem mantendo o assunto à margem. Em 2024, tudo indica que as eleições municipais ocorrerão sem regras específicas.

O desmonte não está apenas nas equipes de policy. Ao tornar APIs proibitivamente caras ou encerrar endpoints específicos sem alarde, a big tech vai se tornando mais opaca. Quem em sã consciência tem US$ 42 mil ou até mesmo US$ 5 mil mensais para gastar nos pacotes da API do Twitter sob Musk? (Existe um pacote de US$100 mensais, mas como analisar a plataforma com apenas 10 mil posts por mês?) Como checar os vídeos recomendados pelo YouTube depois que a plataforma desativou o endpoint da sua API? Tem mais um dificultador: figuras da extrema-direita passaram a processar quem analisa dados sobre as estratégias digitais de figuras políticas. Eu mesmo fui alvo de dois processos do tipo, mas isso é um assunto para depois.

Essa crescente opacidade das plataformas e as consequências para o futuro compõem o primeiro ponto.

O segundo ponto envolve o passado, questões que ainda não sabemos sobre a atuação da big tech nas eleições brasileiras. Pelas últimas três horas eu elenquei um monte de indícios públicos sobre omissão de moderação, impulsionamento de golpismo e financiamento de desinformação por parte das plataformas. Espero que o cenário esteja suficientemente claro. Mas ainda tem um monte de coisas que não sabemos, a começar por grana. Fazendo os três roteiros, algumas vezes pipocavam algumas dúvidas que eu não sabia responder. Pesquisei e falei com gente do mercado para ver se eles conseguiam esclarecê-las, mas, mesmo com ajuda, ninguém foi capaz de solucioná-las. Nós somos sociedade civil. Podemos, no máximo, analisar dados abertos, conversar com a imprensa e falar nas próprias redes sociais. Mas a regulação não vem da sociedade civil: o Governo Federal tem ferramentas.

Vamos às dúvidas:

  1. Quanto dinheiro Google, Facebook, Twitter e afins ganharam com a veiculação de publicidade em conteúdos que atacavam o sistema eleitoral e o Estado Democrático de Direito? Uma conta de padaria rápida nos sugere que o valor facilmente ultrapassou os milhões de reais, mas essa margem aqui é ampla. Aqui eu estou considerando todo tipo de publicidade: anúncios antes ou durante vídeos e Super Chats no YouTube, anúncios veiculados pelo Google AdSense, anúncios veiculados no Facebook e no Instagram, anúncios veiculados no Twitter e outras formas de monetização. Reiterando: se fosse um real, já seria demais.
  2. Esse número do dinheiro não está inteiro se não somarmos quanto dinheiro os golpistas arrecadaram de forma indireta, pedindo doações em seus Pix em vídeos no YouTube, mensagens no Telegram e posts no Instagram enquanto quebravam Brasília e tentavam dar um golpe de estado. Alô, Banco Central: quanto dinheiro os Pix em conteúdos golpistas movimentaram?
  3. Quando está sob pressão, a big tech gosta de divulgar quanto dinheiro contribuiu à economia brasileira, dizendo a quantia que movimentou e quanto seus creators e motoristas (no caso do Uber) ganharam. Ok, é parte do jogo. Já que estamos falando sobre dinheiro da big tech para brasileiros, quanto o/as executivo/as que lideram as operações nacionais destas empresas estavam colocando no bolso, entre salário e bônus, enquanto a omissão da big tech permitia, impulsionava e monetizava conteúdos golpistas e criminosos? Quais foram os gatilhos para bônus financeiros destes executivos no período eleitoral?
  4. As plataformas divulgam números brutos genéricos globais de moderação para dar a impressão de uma limpeza extraordinária. Para entender exatamente, no entanto, se o esforço foi suficiente: quantos vídeos, fotos, posts e tweets mentindo para atacar o sistema eleitoral, conclamando golpe de estado e ameaça de dano físico ou assassinato de autoridades foram deletados pelas plataformas? Mais que um número fechado, que posts foram estes com identificadores únicos para cada um? Mais importantes que tudo: estes posts deletados representavam qual percentual do total de posts criminosos?
  5. Para detalhar como anda a moderação da plataforma, quais posts foram excluídos quando e por qual razão? As punições previstas nas regras da plataforma foram executadas? É absolutamente fundamental que exista maior transparência para que a sociedade entenda como as plataformas onde passamos muitas horas do nosso dia se movimentam para tornar o ambiente mais seguro a nós, nossos queridos e a sociedade. Sem contextualizar e detalhar a ação de moderação, com microdados para análise externa, qualquer ação cheira a estratégia de PR.

Ufa. Um último recado depois de 3 horas de podcast: se você trabalha na big tech e está ouvindo este episódio por diversão ou até por obrigação (às vezes é seu trampo ouvir o que estão falando para medir o potencial risco), saiba que seu trabalho, no pior dos casos, indiretamente ajudou tudo isso que eu descrevi. Eu tenho certeza absoluta que a imensa maioria dos funcionários das operações brasileiras de Google, Facebook e Twitter discorda radicalmente de posicionamentos políticos extremistas, como negar a eficácia da vacina, duvidar da urna eletrônica e querer golpe de estado.

Existe uma expressão que a Luciana Gimenez11 chamaria de “sugarcoat”: você pega uma situação ruim e a enche de açúcar para ela não parecer tão ruim. É o popular “dourar a pílula” no Brasil. Seu trabalho ajudou a viabilizar e, em alguns casos, até decidir por tudo isso que eu expliquei. Você pode dourar esta pílula ou colocar 10 quilos de açúcar, mas esta ainda é uma conclusão amarga. Eu sei, a vida é difícil, os boletos estão desinteressados em doce ou amargo. Muita gente já decidiu que não quer ajudar a diminuir a cobertura vacinal, atacar o sistema eleitoral ou viabilizar golpe de estado enquanto poucos ficam milionários.

Pensa se é este banquete que seu suor vai financiar.

Foto do topo: Joedson Alves/Agência Brasil.

  1. Eu não consigo escrever ou ler este trecho sem respirar aliviado e dar um sorriso.
  2. Ah, o humor auto-depreciativo…
  3. Pelas regras do YouTube, 30% do valor de cada Super Chat fica com a plataforma.
  4. Essa discussão tem nuances: segundo o Marco Civil da Internet, plataformas só são obrigadas a remover conteúdo ilícito/ilegal por decisão judicial.
  5. Ghedin complementa: juridicamente, “isso é ineficaz, salvo engano. As plataformas são obrigadas a guardar conteúdo por pelo menos 6 meses.”
  6. Eu disse no último episódio da temporada passada que um dos meus objetivos em 2023 era falar o menos possível deste sujeito. Falhei.
  7. Na política brasileira isso tem nome: é o jabuti em cima da árvore. Como jabuti não sobe em árvore, alguém o colocou lá. A Agência Lupa explica melhor.
  8. FUD é a sigla em inglês para “medo, incerteza e dúvida”, uma técnica para infundir dúvida e caos informacional quando se quer turvar as águas do debate.
  9. Pelamordedeus, é ironia.
  10. E você achando que ela não ia aparecer…

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